quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Direito à cidade?


"O sistema está na moda, tanto no pensamento quanto nas terminologias e na linguagem. Ora, todo sistema tende a aprisionar a reflexão, a fechar os horizontes. (...) O urbanismo, quase tanto quanto o sistema, está na moda. As questões e reflexões urbanísticas saem dos círculos dos técnicos, dos especialistas, dos intelectuais que pretendem estar na vanguarda dos fatos. Passam para o domínio público através de artigos de jornais e de livros de alcance e ambições diferentes. Ao mesmo tempo, o urbanismo torna-se ideologia e prática. E, no entanto, as questões relativas à Cidade e à realidade urbana não são plenamente conhecidas e reconhecidas; ainda não assumiram politicamente a importância e o significado que tem no pensamento (na ideologia) e na prática." Henri Lefebvre: "Advertência" em O Direito à Cidade, livro publicado originalmente na França no início de 1968.

As advertências de Lefebvre, mais de quarenta anos depois, continuam atuais. Discutir a cidade e seu planejamento continuam na moda e na ordem do dia: somos bombardeados diariamente com notícias e análises de obras de mobilidade urbana para a copa do mundo, de programas habitacionais, de reformulação e renovação do Cais do Porto (em Porto Alegre; mas renovações urbanas - "gentrificação" na pedante linguagem acadêmica - estão acontecendo em várias cidades brasileiras). Tudo isto aparece desconectado, como se fossem fatos isolados e de puro domínio da técnica. A cidade não é uma discussão técnica, é política na sua maior acepção, até mesmo porque deve ser lembrado que o termo grego polis é a origem tanto da palavra cidade quanto da palavra política. Morar na Cidade é estar no locus (lugar) por excelência da política. Um dos grandes problemas é que isto aparece ideologicamente invertido para os habitantes: todos aprendem que política é coisa de político e não enxergam a cidade como ela é: "a cidade tem uma história: ela é a obra de uma história, isto é, de pessoas e de grupos bem determinados que realizam essa obra nas condições históricas." (Lefebvre, no capítulo sobre a especificidade da cidade em O Direito à Cidade)

Nós vivemos na cidade; viver não é a mesma coisa que comprar, mas a fragmentação do espaço urbano cotidiano raras vezes é percebida e o predomínio de relações mercantis no dia a dia das pessoas parece reforçar o parcelamento da cidade em pedaços: quantas pessoas realmente conhecem a cidade em que moram? A grande maioria usa basicamente dois pontos do território: o lugar de moradia e o lugar de trabalho. Entre eles, apenas uma rota de deslocamento, sempre a mesma, dia após dia. E, o pior: ainda por cima, com engarrafamentos. Saber pensar o espaço, para nele se organizar, para nele combater, já pedia o geógrafo Yves Lacoste na década de 70 do século passado. Precisamos retomar a cidade por inteiro, efetivamente nos apropriarmos dela.

Romper esta alienação de todos nós em relação ao espaço que habitamos é a tarefa para tirar a cidade das mãos de burocratas e "especialistas", assumir politicamente a cidade. Ao fazer isso, conseguiremos discutir e compreender a cidade como um todo: mobilidade não é da alçada só de engenheiros de tráfego, está ligada a questões de uso do espaço, dos lugares de moradia - portanto: vamos discutir habitação junto com transporte! As ligações não param por aí: renovações urbanas como a do Cais Mauá também estão ligadas à questão de mobilidade e à pergunta básica: quem vai usar aquele espaço? Que impacto terá sobre o uso de outros espaços (próximos e distantes)? Poderia continuar conectando questões indefinidamente, mas o que deve deve ficar claro é que o verdadeiro direito à cidade não é simplesmente estender a infra-estrutura e a dita cidade formal a todos, o verdadeiro direito à cidade é recuperá-la como valor de uso, não valor de troca.

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