terça-feira, 1 de novembro de 2011

Nossas cidades: tragédia ou farsa?



“Todas as grandes cidades têm um ou vários 'bairros de má-fama' onde se concentra a classe operária. É certo ser frequente a miséria abrigar-se em vielas escondidas, embora próximas aos palácios dos ricos; mas em geral, é-lhe designada uma área à parte, na qual, longe do olhar das classes mais afortunadas, deve safar-se, bem ou mal, sozinha. Na Inglaterra, esses 'bairros de má-fama' se estruturam mais ou menos da mesma forma que em todas as cidades: as piores casas na parte mais feia da cidade; quase sempre, uma longa fila de construção de tijolos, de um ou dois andares, eventualmente com porões habitados e em geral dispostas de maneira irregular. Essas pequenas casas de três ou quatro cômodos e cozinha chamam-se cottages e normalmente constituem em toda a Inglaterra, exceto em alguns bairros de Londres, a habitação da classe operária. Habitualmente, as ruas não são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos ou canais de escoamento, cheias de charco estagnados e fétidos. A ventilação na área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do ar que se respira nessas zonas operárias, onde, ademais, quando faz bom tempo, as ruas servem aos varais que, estendidos de uma casa a outra, são usados para secar roupa.” (F. Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. ed. Boitempo, 2008, pág. 70)

Faça o exercício: substitua no texto acima Inglaterra por Brasil e Cottages por favelas. Pronto! Temos uma descrição atualíssima da situação nas cidades brasileiras (ou latino-americanas, africanas, asiáticas...). E, nunca é demais lembrar, o texto foi escrito originalmente há mais de 160 anos.

Já que começamos com citação, aqui vai mais uma, também sobre a Inglaterra, ainda que o autor seja nosso contemporâneo:

“Desde a construção das primeiras praças Bloomsbury, no século XVIII, os urbanistas não pararam mais de demolir habitações pobres e lojas humildes para erguer casas destinadas à classe média ou aos ricos. A propriedade privada e hereditária do solo possibilitou que essas mudanças fossem feitas com rapidez e pouca interferência pública. A 'renovação' urbana empurrou a pobreza, concentrando-a em lugares mais distantes. Em 1885, a Royal Comission on the Housing of the Working Classes observou: 
A destruição dos ninhos dos abutres [favelas em ruínas] traz grande benefício sanitário e social, mas nenhum tipo de habitação popular tem sido construído em seu lugar (…). A consequência de tal procedimento é que a população sem teto cresce, dispersando-se pelas ruas e pátios próximos às demolições (…) quando surgem as novas residências, pouco se faz para aliviar essa pressão.”
(Richard Sennet, Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. ed. BestBolso, 2008, pág. 324)

A história de nossa urbanização não é exatamente a de periferização da pobreza? Mas nem precisamos pensar em termos históricos: é só lembrar as ameaças de remoção em todas as cidades brasileiras onde há “obras da Copa”.

Estamos repetindo - em nossas cidades - os defeitos do processo de urbanização na Europa, mas sem repetir a resolução destes problemas feita por essas mesmas cidades no século XX. O que só faz lembrar uma outra frase famosa do Marx, a primeira frase d'O 18 de Brumário de Louis Bonaparte: “Hegel observa algures que todos os grandes fatos e personagens da história universal aparecem como que duas vezes. Mas esqueceu-se de acrescentar: uma vez como tragédia e a outra como farsa.”

Até quando nossas cidades, além de trágicas, aparecerão como farsa?

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