domingo, 27 de maio de 2012

Buñuel, dry martini e cigarros

Buñuel fotografado por Man Ray

Alguém já percebeu a mediocridade em que se tornou a discussão sobre a "Lei da Copa?". É um assunto seríssimo, mas boa parte da energia é desperdiçada discutindo se a bebida deve ou não ser liberada nos estádios... Enquanto esta discussão moralista (sim, moralista!) engole até uma parte da esquerda, que tal lembrar alguém que foi a vida toda anti-conformista?

Luis Buñuel, escrevendo sobre bares, bebidas e etc. Afinal, ainda é fim de semana e, lembremos, este blog tem uma seção "bebedeira" ;-) Obs: todas as citações são de: Luis Buñuel. Meu último suspiro. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

Passei horas deliciosas nos bares. O bar para mim é um lugar de meditação e recolhimento, sem o qual a vida é inconcebível. (...)
Grande parte da atividade surrealista desenvolveu-se no Café Cyrano, na Place Blanche. Eu também gostava do Sélect, nos Champs-Elysées, e fui convidado para a inauguração do La Coupole, em Montparnasse. Foi lá que encontrei Man Ray e Aragon para organizarmos a primeira sessão de Um Cão Andaluz. Não poderia citar todos. Digo apenas que o café supõe a conversa, o vaivém, a amizade, vez ou outra, mulheres.
O bar, ao contrário, é um exercício de solidão.
Tem que ser, acima de tudo, calmo, bem escuro, bem confortável. Toda música, ainda que distante, deve ser severamente proibida (ao contrário do costume infame que se espalha hoje pelo mundo). Uma dúzia de mesas no máximo, se possível com fregueses pouco comunicativos. (pág. 67)
Tem uma coisa aí que concordo 100%. Adoro música e por isso mesmo, detesto bar com música ao vivo. Música se escuta. Em bar se bebe. Ponto. E agora crianças, peguem seu blocos de notas e anotem a famosíssima receita de dry martini de Buñuel:
Naturalmente, nunca bebo vinho em bar. O vinho é um prazer puramente físico, que não excita em absoluto a imaginação.
Num bar, para induzir e estimular o devaneio, o recomendável é o gim inglês. Meu drinque favorito é o dry martini. Considerando o papel primordial que ele desempenhou nesta vida que relato, vejo-me obrigado a dedicar-lhe uma ou duas páginas. Como todos os drinques, o dry martini é uma invenção americana. Compõe-se essencialmente de gim e gotas de um vermute, de preferência Noilly-Prat. Os autênticos aficionados, que apreciam seu dry martini bem seco, chegavam a dizer que bastava deixar um raio de sol atravessar uma garrafa de Noilly-Prat antes de tocar o copo de gim. Um bom dry martini, diziam certa época nos Estados Unidos, deve se parecer com a concepção da Virgem Maria. Com efeito, sabemos que, segundo são Tomás de Aquino, o poder gerador do espírito Santo atravesou o hímem da Virgem "como um raio de sol passa através de uma vidraça, sem quebrá-la". O mesmo se passa com o Noilly-Prat, diziam. Mas eu achava isso um pouco de exagero.
Outra recomenação: convém que o gelo utilizado esteja bem frio, bem duro, para não soltar água. Nada pior que um martini aguado.
Peço licença para dar minha receita pessoal, fruto de longa experiência, com a qual continuo a obter um sucesso lisonjeador.
Guardo tudo que é necessário no congelador na véspera do dia em que espero meus convidados, os copos, o gim, a coqueteleira. Tenho um termômetro que me permite certificar-me de que o gelo está numa temperatura de cerca de 20 graus abaixo de zero.
No dia seguinte, quando chegam os amigos, pego tudo de que preciso. Sobre o gelo bem duro despejo algumas gotas de Noilly-Prat e meia colherinha de café de angustura. Agito tudo, depois jogo fora o líquido. Preservo apenas o gelo, que carrega o ligeiro vestígio dos dois perfumes, e sobre o gelo despejo o gim puro. Sacudo um pouco mais e sirvo. É só isso, mas é insuperável. (pág. 70-71)
Evidentemente, tem o complemento inevitável, que nos dias que correm, parece mais uma heresia (afinal, o que é mais uma heresia para quem passou a vida provocando e subvertendo a caretice vigente?):
Impossível beber sem fumar. No que me toca, comecei aos dezesseis anos e nunca parei. (...)
O tabaco, que se casa admiravelmente com o álcool (se o álcool é a rainha, o tabaco é o rei), é um solícito companheiro de todos os acontecimentos de uma vida. É o grande amigo dos bons e maus dias. Acendemos um cigarro para comemorar uma alegria ou esconder uma amargura. Quando estamos sozinhos ou em grupo.
O tabaco é um prazer em todos os sentidos, da visão (que espetáculo, sob o papel prateado, os cigarros brancos enfileirados como que para uma parada), do olfato, do tato. Se me vendassem os olhos e colocassem um cigarro aceso em minha boca, eu me negaria a fumar. Gosto de apalpar o maço no meu bolso, abri-lo, apreciar entre dois dedos a consistência de um cigarro, sentir o papel sob meus lábios, o gosto do fumo na minha língua, ver irromper a chama, aproximá-la, encher-me enfim de calor.
E para finalizar, impossível falar de Buñuel e não fazer sequer uma referência a seus filmes. Vejam (e/ou revejam) Um Cão Andaluz, um dos maiores clássicos de todos os tempos do cinema, feito em parceria com Salvador Dalí. E como são as coisas: o filme foi feito antes de Buñuel conhecer os surrealistas. Aliás, foi por causa deste filme que ele foi convidado a participar do movimento!

AVISO: se você nunca viu este filme, saiba que contém a famosa "cena do olho". Mais de 80 anos depois (o filme é de 1929), a cena ainda choca algumas pessoas!


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