quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Foucault e a geografia


Pequeno trecho da célebre entrevista de Michel Foucault à revista Hérodote, publicada originalmente no histórico primeiro número do periódico em 1976. Foi traduzida para o português e incluída na coletânea de textos Microfísica do Poder, Rio de Janeiro: Graal, 4ª edição, 1984. Págs. 153-165.
Hérodote: O que se deve enfatizar, a respeito de certas metáforas espaciais, é que elas são tanto geográficas quanto estratégicas, e isso é muito normal visto que a geografia se desenvolveu à sombra do exército. Entre o discurso geográfico e o discurso estratégico, pode-se observar uma circulação de noções: a região dos geógrafos é a mesma que a região militar (de regere, comandar) e província o mesmo que território vencido (de vincere). O campo remete ao campo de batalha…

Michel Foucault: Reprovaram-me muito por essas obsessões espaciais, e elas de fato me obcecaram. Mas, através delas, creio ter descoberto o que no fundo procurava: as relações que podem existir entre poder e saber. Desde o momento em que se pode analisar o saber em termos de região, de domínio, de implantação, de deslocamento de transferência, pode-se apreender o processo pelo qual o saber funciona como um poder e reproduz seus efeitos. Existe uma administração do saber, uma política do saber, relações de poder que passam pelo saber e que naturalmente, quando se quer descrevê-las, remetem àquelas formas de dominação a que se referem noções como campo, posição, região, território. E o termo político-estratégico indica como o militar e o administrativo efetivamente se inscrevem em um solo ou em formas de discurso. Quem encarasse a análise dos discursos somente em termos de continuidade temporal seria necessariamente levado a analisá-la e encará-la como a transformação interna de uma consciência individual. Construiria ainda uma grande consciência coletiva no interior da qual se passariam as coisas.
Metaforizar as transformações do discurso através de um vocabulário temporal conduz necessariamente à utilização do modelo da consciência individual, com sua temporalidade própria. Tentar ao contrário decifrá-lo através de metáforas espaciais, estratégicas, permite perceber exatamente os pontos pelos quais os discursos se transformam em, através de e a partir das relações de poder.  
Hérodote: Althusser, no Ler o Capital, coloca uma questão análoga: "o recurso às metáforas espaciais, de que (…) o presente texto faz uso, coloca um problema teórico: o das suas condições de existência em um discurso com pretensão científica. Este problema pode ser exposto da maneira seguinte: por que um certo tipo de discurso requer necessariamente o uso de metáforas retiradas de discursos não-científicos?" Althusser apresenta assim o recurso às metáforas espaciais como necessário, mas ao mesmo tempo como regressivo, não rigoroso. Tudo leva a pensar, ao contrário, que as metáforas espaciais, longe de serem reacionárias, tecnocráticas, abusivas ou ilegítimas, são antes de tudo o sintoma de um pensamento "estratégico", "combatente", que coloca o espaço do discurso como terreno e objeto de práticas políticas.  
Michel Foucault: É efetivamente de guerra, de administração, de implantação, de gestão de um saber que se trata em tais expressões. Seria necessário fazer uma crítica dessa desqualificação do espaço que vem reinando há varias gerações. Foi com Bergson, ou mesmo antes, que isso começou. O espaço é o que estava morto, fixo, não dialético, imóvel. Em compensação, o tempo era rico, fecundo, vivo e dialético.
A utilização de termos espaciais tem um quê de anti-história para todos que confundem a história com as velhas formas de evolução, da continuidade viva, do desenvolvimento orgânico, do progresso da consciência ou do projeto da existência. Se alguém falasse em termos de espaço, é porque era contra o tempo. É porque "negava a história", como diziam os tolos, é porque era "tecnocrata". Eles não compreendem que, na demarcação das implantações, das delimitações, dos recortes de objetos, das classificações, das organizações de domínios, o que se fazia aflorar eram processos - históricos certamente - de poder. A descrição espacializante dos fatos discursivos desemboca na análise dos efeitos de poder que lhe estão ligados.
 Foucault em seu escritório

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