O livro de Armando Corrêa da Silva, De quem é o pedaço?, está há muito esgotado. É uma pena, pois Armando não só foi um dos pioneiros na renovação da Geografia brasileira (naquilo que ficou conhecido como "geografia crítica"), tradutor do fundamental livro de David Harvey A justiça social e a cidade (também há muito esgotado), como um intelectual e professor ímpar na USP e na geografia brasileira. Sua obra merece ser resgatada e novamente discutida. Minha modestíssima contribuição é dispor novamente algum de seus textos, já que os novos alunos da Geografia hoje em dia praticamente desconhecem Armando.
Este blog anda meio devagar, mas é minha intenção digitar/dispor mais textos do livro ao longo do ano. Aguardem!
O texto abaixo é o último do livro de mesmo nome. Mantive sem tradução as citações em outras línguas - como se encontra no original - porque não pretendo interferir no estilo do autor. Boa leitura.
De
quem é o pedaço?
Armando
Corrêa da Silva
O espaço da consciência possível
No
capitalismo de livre-concorrência o espaço do indivíduo parece
ilimitado. A Revolução se impõe a imensa tarefa de levar o
progresso a todos os cantos do mundo!
Maquiavel
viveu o momento inicial da formação do Estado Moderno em busca de
sua unidade. Nos Principados do norte da Itália, o pequeno lugar
determinava o espaço político possível, que dava origem à máxima
consciência possível. Esses estados autônomos se relacionavam
entre si num processo constante de conflitos. Na atmosfera do espaço
político o destino individual dependia pouco das determinações
externas e crescia o papel do Príncipe. O poder punha-se como o
destino e a sorte. Por isso, dizia o florentino: “Concluo,
portanto, por dizer que, modificando-se a sorte, e mantendo os
homens, obstinadamente, o seu modo de agir, são felizes enquanto
esse modo de agir e as particularidades dos tempos concordarem. Não
concordando, são infelizes. Estou convencido de que é melhor ser
impetuoso do que circunspecto, porque a sorte é mulher e, para
dominá-la, é preciso bater-lhe e contrariá-la. E é geralmente
reconhecido que ela se deixa dominar mais por estes do que por
aqueles que procedem friamente. A sorte, como mulher, é sempre amiga
dos jovens porque são menos circunspectos, mais ferozes e com maior
audácia a dominam” (Machiavelli, 1979:210).
Escrito
em 1513 o texto é considerado até hoje como um manual de ciência
política, ultrapassando mesmo seu contexto de época.
No
capitalismo de concorrência monopolista o espaço dos grupos é a
forma normal de manifestações da democracia.
Vivendo
as consequências práticas dessa situação, Lênin discutiu o
assunto num contexto em que se punha a realização, também de uma
mensagem mundial, de uma revolução socialista, nos limites de um
Estado. Trata-se, agora, do espaço político de um grande espaço,
que determina a máxima consciência possível. Como não se trata
mais do individual, mas do coletivo, é discutida a forma democrática
de existência do espaço político. Por isso dizia o autor, em
agosto e setembro de 1917: “desenvolver a democracia até
o fim; procurar as formas
desse desenvolvimento, submetê-las à prova da prática, etc., nisto
consiste uma das tarefas essenciais pela luta da revolução social.
Tomado à parte, o democratismo, qualquer que seja, não dará o
socialismo; mas na vida real o democratismo não será ‘tomado à
parte’, ele será ‘tomado em conjunto’; exercerá igualmente
uma influência sobre a economia, estimulará sua
transformação; sofrerá a influência do desenvolvimento ecnômico,
etc. Tal é a dialética da história nova” (Lenin: 1961:96).
O
texto ultrapassa também o contexto em que foi escrito, como ciência
política contemporânea.
No
espaco político do presente repõe-se os espaços das pessoas e dos
grupos.
Por
isso, o espaço colonial, enquanto resultado da via colonial,
manifesta-se como democracia contida pelo poder e manipulada por ele
(Chasin, 1978).
Então,
no espaço complementar, enquanto contradição do espaço colonial,
a democracia é a busca da democracia enquanto espaço aberto
contínuo na unidade diferenciada (Silva, 1979).
A
sorte, de Maquiavel, e as circunstâncias, de Lenin, desempenham
também aqui, o seu papel.
Por
isso o espaço democrático é fragmentado na crise do pensar
contemporâneo.
Os subespaços na crise epistemológica
Em
Gramsci, a sorte e as circunstâncias, estão relacionadas ao papel
do intelectual. Como os intelectuais se relacionam por sua condição
de intelectuais, o prblema que se coloca é o dos intelectuais e os
outros.
Como,
para Gramsci, todos os homens são intelectuais embora nem todos
exerçam essa função, põe-se ao intelectual, continuamente, a
procura dos outros. Gramsci vive essa crise (Gramsci, 1978:15).
Daí
a contradição epistemológica.
Para
Lacoste, discutindo o papel do intelectual em Geografia, chega a
defini-lo como um educador, que produz a informação científica
crítica. Com o diz:
“Criticar
é por em crise. Travar polêmica é fazer a guerra.
Nós
não reformaremos a Geografia, viramo-la contra os nossos
adversários.
É
duma guerrilha epistemológica que se trata: as escaramuças
ideológicas, as emboscadas teóricas seriam inúteis se não
conduzissem a uma geografia alternativa e de combate.
Esta
geografia, ao informar a prática dos militantes e dos sindicalistas,
e por ela informada, permitiria aos grupos dominados melhor situarem
o inimigo, melhor conhecerem e escolherem o terreno” (Lacoste,
1979:134).
Para
Milton Santos, o intelectual é alguém que deve preparar-se para
definir os fundamentos de “um espaço verdadeiramente humano, um
espaço que una os homens por e para seu trabalho, mas não para em
seguida os separar em classes, entre explorados e exploradores; um
espaço matéria inerte trabalhado pelo homem, mas não para se
voltar contra ele; um espaço. Natureza social aberta à contemplação
direta dos seres humanos, e não um artifício; um espaço
instrumento de reprodução da vida, e não uma mercadoria trabalhada
por uma outra mercadoria, o homem artificializado” (Santos,
1978:219).
A
crise epistemológica mostra o intelectual ante a sorte e as
circunstâncias, como agente de um espaço autônomo, na crise, que
deseja democrático.
Por
isso, o espaço democrático é fragmentado, mesmo no processo da
elaboração contemporânea do pensar.
Os subespaços na construção ontológica
Para
Hartmann, o intelectual, na sorte ou nas circustâncias, põe-se como
a ideia em trabalho. Por isso, a discussão do ser democrático
remete-se às categorias dimensionais de espaço e tempo. Há uma
oposição entre simultaneidade comprovável e não comprovável.
Como diz: “Ontologicamente vistas las cosas, hay muchas en el mundo
real que no son comprobables. Las hay donde quiera que los nexos
entre ellas remiten a lo que no podemos hacer asequible con nuestros
métodos de fijación. Simultaneidad puede existir, con todo su
sentido, entre sucesos de sistemas en movimiento diferente, aún
cuando no puede fijarse” (Hartmann, 1960:277).
Em
Harvey, o intelectual é o construtor de modelos que são um
instrumento para a ação. Com isso, relaciona a questão democrática
ao trabalho. Mas o trabalho é o lidar com as ideias. Por isso “The
argument is ontological, seeking to resolve the question 'what is
space'? […]” Mais adiante, a questão é reformulada: “how is
that different human practices create and make use of distinctive
conceptualization of space?” (Harvey, 1973: 13/4)
Para
Zeleny, o intelectual é o agente que busca a solução dos problemas
teóricos. O intelectual lida com a teoria e propõe os termos em que
a resolve. Por isso, diz: “Al mismo tiempo el núcleo del metodo de
Marx – la concepción práctico-materialista de la realidad y de la
teoria – se hace actual tal como fue elaborada em su forma
primitiva em la critica de la economía política burguesa y de la
filosofia especulativa, particularmente la de hegel. Sólo enlazando
com esos elementos y ese profundo núcleo metódico de la teoría
marxiana parece posible seguir avanzando em la explicación de la
problemática ontopraxeológica de la segunda mitad del siglo XX”
(Zeleny, 1974: 328).
O
espaço político, fragmentado, reproduz-se no saber filosófico,
também fragmentado. O espaço democrático das pessoas e dos grupos
é o pôr-se em sequência esses fragmentos, articulando-os no
processo de os fazer como reprodução e de os pensar como montagem.
Mas,
quais os territórios possíveis?
O lugar da crítica na crítica do lugar
Em
Lukács, um dos territórios possíveis é o território do ser
social em Hegel. Trata-se de separar o verdadeiro do falso para
restabelecer a integridade do pensamento. Como diz: “Desse modo, um
conhecimento verdadeiro dos complexos que favorecem ou impedem a
superação pode tornar-se, em determinadas circunstâncias, um
componente ontologicamente real do próprio processo de superação.
É evidente que o conhecimento dos processos naturais pode também
levar à superação de complexos; e a série dessas superações vai
desde a ciência da estrutura atômica até a criação de seres
vivos. Na medida em que o conhecimento permite uma intervenção
ativa em sua dialética, o processo tem lugar no campo do ser social,
enquanto intercâmbio orgânico entre a sociedade e natureza, embora
seja pressuposto indispensável à captação correta da dialética
da natureza” (Lukács, 1979: 112).
Em
Marx o território possível é o da História. Trata-se de combater
a ideologia que se põe sem correspondência com a existência
humana. Como diz: “Esta concepção da história consiste, pois, em
expor o processo real de produção, partindo da produção material
da vida imediata; e em conceber a forma de intercâmbio conectada a
este modo de produção e por ele engendrada (ou seja, a sociedade
civil em suas diferentes fases) como o fundamento de toda a história,
apresentando-a em sua ação enquanto Estado e explicando a partir
dela o conjunto dos diversos produtos teóricos e formas de
consciência – religião, filosofia, moral, etc – assim como em
seguir seu processo de nascimento a partir desses produtos; o que
permite então, naturalmente, expor a coisa em sua totalidade (e
também, por isso mesmo, examinar a ação recíproca entre estes
diferentes aspectos)” (Marx, 1977: 55).
Em
Ratzel o território possível é o da Geografia. Trata-se demostrar
a correspondência existente entre o soslo, a sociedade e o Estado.
Como diz: “a sociedade é o intermediário pelo qual o Estado se
une ao solo. Segue-se que as relações da sociedade com o solo
afetam a natureza do Estado em qualquer fase de seu desenvolvimento
que se considere” (Ratzel, 1978: 10).
Então,
o território, enquanto ser, duração e extensão, deve pôr-se em
movimento.
O outro lado do disco
A
linha de fuga conduz ao centro, que é centro recorrente, começo do
encontro do movimento do território.
A
sorte e as circunstâncias se põem como rarefações de fragmentos
em convívio no quebra-cabeças. O intelectual parte-se em multidões
de intelectuais que são subtotalidades sem conexões possíveis, na
montagem plural.
Os
territórios possíveis levam ao fim e ao começo.
Põe-se
o real como pedaços que se sabem pedaços.
O
fazer e o pensar indagam: de quem é o pedaço?
Bibliografia
Chasin, J. O integralismo de Plínio Salgado (formas de regressividade no capitalismo hipertardio). Livr. Ed. Ciências Humanas, São Paulo, 1978.Gramsci, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1978.
Hartmann, N. Ontología IV. Filosofia de la naturaleza. Teoría especial de las categorías. Categorías dimensionales. Categorías cosmológicas. Fondo de Cultura Económica, México, 1960.
Harvey, D. Social Justice and the City. Edward Arnold, London, 1978.
Lacoste, Y. A Geografia serve antes de mais nada para fazer a guerra. Ed. do MG, São Paulo, 1979.
Lênin, V. I. O Estado e a revolução. Ed. Vitória, Rio de Janeiro, 1961.
Lukács, G. Ontologia do ser social. A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel. Livr. Ed. Ciências Humanas, São Paulo, 1979.
Machiavelli, N. O príncipe. Ed. Tecnoprint, Rio de Janeiro, 1979.
Marx, K. A ideologia alemã. Ed. Grijalbo, São Paulo, 1977.
Ratzel, F. O solo, a sociedade e o Estado. Orig. em xerox, São Paulo, 1978.
Santos, M. Por uma Geografia nova. Hucitec-EDUSP, São Paulo, 1978.
Silva, A. C. da Cinco paralelos e um meridiano. Contribuição ao discurso geográfico teórico. Orig. em xerox, inédito, São Paulo, 1979.
Zeleny, J. La estructura lógica de “El Capital” de Marx, ed. Grijalbo, Barcelona, 1974.