quarta-feira, 30 de abril de 2014

O ESPAÇO NO LUGAR?


Dando seqüência à serie, mais um texto de Armando Corrêa da Silva:

O ESPAÇO NO LUGAR?


A crise da Geografia tem uma vantagem em relação à crise dos demais campos do conhecimento. A reflexão filosófica dela esteve ausente durante muito tempo: mais precisamente, alguns clássicos ainda a praticaram, mas a deficiência do preparo filosófico constitui sempre uma barreira ao encaminhamento da solução.
O “terra-a-terra” dos geógrafos deve explicar-se como determinação de seu objeto e, ao mesmo tempo, como a preocupação mais com o território do que com a região, a área, o lugar e o espaço. Mais com o lugar, tomado isoladamente (ideograficamente) do que com as relações espaciais. A preocupação recente com estas não partiu da reflexão, mas foi determinação externa de um mundo cada vez mais unido pelas comunicações, que põe em crise a atomização local, regional e nacional.
Cabe, então, mesmo que tardiamente, retomar a reflexão. Mas esta não se põe, se o problema filosófico não está resolvido.
Por isso, mesmo que de forma autodidata, arrisco a fazer aqui algumas observações sobre o movimento da razão científica, tal como o entendo, na realização da produção intelectual.
O procedimento didático impõe-se, então, como instrumento de clarificação da proposição.

Da práxis à epistemologia

A práxis implica uma demonstração teórica e em uma demonstração prática.
A primeira remete à consistência do argumento e a segunda à verificação empírica. O trabalho intelectual científico tem essa característica.
É essa práxis que constitui a gênese da produção da teoria, que se realiza como proposição e argumento ontológicos.
A ontologia, uma vez delineada, remete à epistemologia.
A epistemologia, enquanto discurso crítico, baseia-se na gnosiologia, na teoria do conhecimento, na lógica e na metodologia.
Vejamos cada ma delas, pois disso depende a elaboração do saber, que constitui o input de uma nova realização da práxis.
O que se segue são suposições, que podem ser compreendidas como hipóteses sistêmicas.
Em gnosiologia o ponto de partida é o raciocínio. Produzindo o conceito-ideia, ele leva à compreensão. O conceito-ideia expressa-se como categoria, que remete à memória cultural, voltando em feed-back ao raciocínio.
O raciocínio produz a consciência, que é conceito-ideia e compreensão. Mas a consciência não pode realizar-se sem a intuição. É nessa relação que se põe a pré-ideação. Por isso, também a impressão-expressão. Esta causa a emoção (que é manifestação da social-natural da humanidade). A memória cultural registra a pré-ideação.
A intuição remete à sensibilidade que é a forma de pôr-se a sensação (o sensível), e o sistema nervoso, que programa a memória genética. Esta põe-se como feed-back do sistema nervoso. Por isso, a memória genética registra também a pré-ideação.
A memória genética e a memória cultural entram em interação como determinações naturais e sociais.
Então, a gnosiologia estuda a estrutura e funcionamento do conhecimento.
A teoria do conhecimento propõe-se, inicialmente, como conteúdo e forma. O conteúdo, como significado, apresenta-se como real e aparente. A forma, como significante, apresenta-se, igualmente, como real e aparente.
Há, então, uma estrutura e funcionamento do conhecer, que se põe, desde logo, como linguagem. Há a linguagem do senso comum e a linguagem do conhecimento científico. A linguagem é relação sujeito-objeto como prática ou como teoria. No primeiro caso, ela remete à verificação empírica e ao comportamento. Por isso, é a transformação inadequada do real; a verdade, a transformação adequada do real. No segundo caso, ela remete às representações lógicas e às ideias. Por isso, o erro é o conhecimento das aparências das determinações; a verdade, o conhecimento das essências das determinações.
Essa estrutura e funcionamento do conhecer produz, como resultado, a verdade lógica, como conhecimento da essência das determinações, o que leva à solução do problema: produz, também, a verdade empírica, como transformação adequada do real, que corresponde à satisfação da necessidade e, por isso, remete à solução do problema.
A verdade lógica é input da relação inicial de conteúdo-forma, do mesmo modo que a verdade empírica.
Este sistema fechado tem modalidades de coerência interna.
A lógica dá conta desta coerência interna, enquanto estrutura e funcionamento do pensamento.
Em primeiro lugar, como símbolo e sinal, significado e significante.
Em segundo lugar, como afirmação, negação e negação da negação.
Em terceiro lugar, como identidade, não contradição e terceiro excluído.
Em quarto lugar, como parte e todo.
Assim, como lógica simbólica, como lógica dialética, como lógica formal e como lógica estrutural.
O conjunto da estrutura e funcionamento do pensamento põe-se então, sistematicamente, como interação entre significado e movimento, significado e forma, significado e análise, que é output do significado.
Mas como realizar essas operações?
A metodologia procura ser a resposta.
Ela lida com a explicação e a descrição. A explicação é encadeamento de raciocínios, que produzem a interpretação. Ela é a mediação entre o concreto lógico e a abstração. A descrição, que se subdivide em hipótese, observação, análise e generalização, produz a investigação, que é mediação entre a abstração e o concreto sensível.
Se se caminha do concreto lógico ao concreto lógico, da abstração à abstração, do concreto sensível ao concreto sensível, tem-se a dedução. Então, a explicação é sempre um processo de dedução. Se a caminhada do concreto lógico à abstração e desta ao concreto sensível, ou do concreto sensível à abstração e desta ao concreto lógico, tem-se a indução. Dedução e indução relacionam-se porque não há explicação sem descrição e descrição sem explicação no conjunto do pensar.
A epistemologia produz-se, então, como discurso estrutural-funcional, que se expressa como comunicação. 
O problema realmente difícil põe-se como registro de uma nova programação, que implica sempre a decodificação da mensagem. Por isso, o feed-back é sempre ontológico ou, mesmo, metafísico. Mas decodificá-lo é retomar o processo de produção da ontologia.
Põe-se o aplicar da proposição, como trabalho intelectual científico referido ao objeto da geografia.

(SILVA, Armando Corrêa da. De quem é o pedaço? Espaço e cultura. São Paulo: HUCITEC, 1986, pág. 131-134)

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