terça-feira, 29 de maio de 2012

Milton Santos e o direito de morar



Mexendo nos meus livros atrás de subsídios para um outro assunto, acabei abrindo um livro do Milton Santos que há muitos anos não folheava. E me deparei com o trecho abaixo. Não continua perfeitamente atual? Mesmo 25 anos depois?

O direito de morar 
E o direito de morar? Confundido em boa parte da literatura especializada com o direito de ser proprietário de uma casa, é objeto de um discurso ideológico cheio, às vezes, de boas intenções e mais freqüentemente destinado a confundir os espíritos, afastando cada vez para mais longe uma proposta correta que remedeie a questão. Por enquanto, o que mais se conseguiu foi consagrar o predomínio de uma visão imobiliária da cidade, que impede de enxergá-la como uma totalidade. O mito do direito à propriedade da casa levou, num primeiro e longo momento, a que se construíssem casas e apartamentos para as classes médias. Mesmo assim, os preços geralmente eram (e são) exorbitantes, ainda quando os imóveis são construídos com o dinheiro público, dinheiro acumulado com a contribuição obrigatória de todos os trabalhadores. Quem já pensou em coibir ou mesmo proibir as propagandas enganadoras que aparecem cada semana nos jornais para atiçar o interesse dos pretendentes e, não raro, para induzi-los em erro? Ora, diz este ou aquele tecnocrata, o custo dessa publicidade "não ultrapassa dois a três por cento do custo da obra", como se isso não fosse exorbitante. E por que então não estabelecer um tabelamento, rígido e não dócil, para a compra e o aluguel de todos os imóveis construídos com o dinheiro do povo? Nada mais natural. Os mesmos tecnocratas, presos nas gavetas das imobiliárias ou enredados em raciocínios ineptos, prosseguem na busca de uma pretensa racionalidade dos negócios, quando no caso trata-se de outra coisa. 
O que é bom para os pobres... 
Quando, diante da situação explosiva nas cidades e em face da proximidade das eleições, foi decidido construir casas para os mais pobres, foi para lhes dar habitações que já nasciam subnormais, neste caso sem aspas. A normalidade estabelecida para os pobres por definição oficial, aconselhada e defendida por pseudo-intelectuais, passou a autorizar a construção de habitações tão pequenas que conduzem a toda espécie de confinamentos e promiscuidades. Na cabeça tortuosa de tais técnicos, as pessoas têm necessidades essenciais em função da classe a que pertencem. Não foram esses mesmos que traçaram ou desenharam os famosos quartos de empregada lado a lado com os quartos muito mais amplos dos patrões? Tais fatos, relativos à "normalidade" da moradia dos pobres, são praticamente aceitos pela sociedade, isto é, por uma classe média não culta. Isto justifica pensar que o raciocínio economicista e imoral tomou o lugar da cultura, que levaria a preocupações mais nobres.
Milton Santos: O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987, págs 45-46.

domingo, 27 de maio de 2012

Buñuel, dry martini e cigarros

Buñuel fotografado por Man Ray

Alguém já percebeu a mediocridade em que se tornou a discussão sobre a "Lei da Copa?". É um assunto seríssimo, mas boa parte da energia é desperdiçada discutindo se a bebida deve ou não ser liberada nos estádios... Enquanto esta discussão moralista (sim, moralista!) engole até uma parte da esquerda, que tal lembrar alguém que foi a vida toda anti-conformista?

Luis Buñuel, escrevendo sobre bares, bebidas e etc. Afinal, ainda é fim de semana e, lembremos, este blog tem uma seção "bebedeira" ;-) Obs: todas as citações são de: Luis Buñuel. Meu último suspiro. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

Passei horas deliciosas nos bares. O bar para mim é um lugar de meditação e recolhimento, sem o qual a vida é inconcebível. (...)
Grande parte da atividade surrealista desenvolveu-se no Café Cyrano, na Place Blanche. Eu também gostava do Sélect, nos Champs-Elysées, e fui convidado para a inauguração do La Coupole, em Montparnasse. Foi lá que encontrei Man Ray e Aragon para organizarmos a primeira sessão de Um Cão Andaluz. Não poderia citar todos. Digo apenas que o café supõe a conversa, o vaivém, a amizade, vez ou outra, mulheres.
O bar, ao contrário, é um exercício de solidão.
Tem que ser, acima de tudo, calmo, bem escuro, bem confortável. Toda música, ainda que distante, deve ser severamente proibida (ao contrário do costume infame que se espalha hoje pelo mundo). Uma dúzia de mesas no máximo, se possível com fregueses pouco comunicativos. (pág. 67)
Tem uma coisa aí que concordo 100%. Adoro música e por isso mesmo, detesto bar com música ao vivo. Música se escuta. Em bar se bebe. Ponto. E agora crianças, peguem seu blocos de notas e anotem a famosíssima receita de dry martini de Buñuel:
Naturalmente, nunca bebo vinho em bar. O vinho é um prazer puramente físico, que não excita em absoluto a imaginação.
Num bar, para induzir e estimular o devaneio, o recomendável é o gim inglês. Meu drinque favorito é o dry martini. Considerando o papel primordial que ele desempenhou nesta vida que relato, vejo-me obrigado a dedicar-lhe uma ou duas páginas. Como todos os drinques, o dry martini é uma invenção americana. Compõe-se essencialmente de gim e gotas de um vermute, de preferência Noilly-Prat. Os autênticos aficionados, que apreciam seu dry martini bem seco, chegavam a dizer que bastava deixar um raio de sol atravessar uma garrafa de Noilly-Prat antes de tocar o copo de gim. Um bom dry martini, diziam certa época nos Estados Unidos, deve se parecer com a concepção da Virgem Maria. Com efeito, sabemos que, segundo são Tomás de Aquino, o poder gerador do espírito Santo atravesou o hímem da Virgem "como um raio de sol passa através de uma vidraça, sem quebrá-la". O mesmo se passa com o Noilly-Prat, diziam. Mas eu achava isso um pouco de exagero.
Outra recomenação: convém que o gelo utilizado esteja bem frio, bem duro, para não soltar água. Nada pior que um martini aguado.
Peço licença para dar minha receita pessoal, fruto de longa experiência, com a qual continuo a obter um sucesso lisonjeador.
Guardo tudo que é necessário no congelador na véspera do dia em que espero meus convidados, os copos, o gim, a coqueteleira. Tenho um termômetro que me permite certificar-me de que o gelo está numa temperatura de cerca de 20 graus abaixo de zero.
No dia seguinte, quando chegam os amigos, pego tudo de que preciso. Sobre o gelo bem duro despejo algumas gotas de Noilly-Prat e meia colherinha de café de angustura. Agito tudo, depois jogo fora o líquido. Preservo apenas o gelo, que carrega o ligeiro vestígio dos dois perfumes, e sobre o gelo despejo o gim puro. Sacudo um pouco mais e sirvo. É só isso, mas é insuperável. (pág. 70-71)
Evidentemente, tem o complemento inevitável, que nos dias que correm, parece mais uma heresia (afinal, o que é mais uma heresia para quem passou a vida provocando e subvertendo a caretice vigente?):
Impossível beber sem fumar. No que me toca, comecei aos dezesseis anos e nunca parei. (...)
O tabaco, que se casa admiravelmente com o álcool (se o álcool é a rainha, o tabaco é o rei), é um solícito companheiro de todos os acontecimentos de uma vida. É o grande amigo dos bons e maus dias. Acendemos um cigarro para comemorar uma alegria ou esconder uma amargura. Quando estamos sozinhos ou em grupo.
O tabaco é um prazer em todos os sentidos, da visão (que espetáculo, sob o papel prateado, os cigarros brancos enfileirados como que para uma parada), do olfato, do tato. Se me vendassem os olhos e colocassem um cigarro aceso em minha boca, eu me negaria a fumar. Gosto de apalpar o maço no meu bolso, abri-lo, apreciar entre dois dedos a consistência de um cigarro, sentir o papel sob meus lábios, o gosto do fumo na minha língua, ver irromper a chama, aproximá-la, encher-me enfim de calor.
E para finalizar, impossível falar de Buñuel e não fazer sequer uma referência a seus filmes. Vejam (e/ou revejam) Um Cão Andaluz, um dos maiores clássicos de todos os tempos do cinema, feito em parceria com Salvador Dalí. E como são as coisas: o filme foi feito antes de Buñuel conhecer os surrealistas. Aliás, foi por causa deste filme que ele foi convidado a participar do movimento!

AVISO: se você nunca viu este filme, saiba que contém a famosa "cena do olho". Mais de 80 anos depois (o filme é de 1929), a cena ainda choca algumas pessoas!


segunda-feira, 21 de maio de 2012

Entrevista com David Harvey

O Geógrafo Inglês e Professor da CUNY (City University of New York) David Harvey já está quase virando "arroz de festa" no Brasil: são vários livros, artigos e entrevistas publicadas em português. Além disso, tem vindo quase anualmente ao País. Então, seguindo o ritmo, mais uma entrevista, para a Revista do IPEA Desafios do Desenvolvimento, nº 71. Um excerto:
Desenvolvimento - Qual seria, então, a natureza do problema?
Harvey - As grandes questões que restam por serem resolvidas: desigualdade social global e degradação ambiental. Se você se perguntar o que essas políticas em curso realmente resolvem, a resposta é que elas solucionam a situação de uma casta capitalista, cada vez mais minoritária, que acumula grandes riquezas às custas dos demais. Desse ponto de vista, foram um grande sucesso. Mesmo nesta crise, muitos conseguiram acumular mais riqueza. A riqueza se tornou ainda mais concentrada e o poder também. A estrutura de poder e a estrutura de renda servem àqueles que não têm intenção de mudanças e impede a discussão de alternativas. Essa estrutura de poder controla a política, é o que eu chamo de “Partido de Wall Street”. Apesar de o sistema ainda estar indo muito bem, para eles, na maior parte do mundo; na Índia, por exemplo, o número de bilionários dobrou nos últimos dois anos, o mesmo tem acontecido na China, a concentração de riqueza continua. Isso coloca em cena a questão política. É o que o movimento do Ocupar Wall Street chama de “política do 1%”.
A entrevista completa você pode ler aqui. Boa leitura.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Os processos são os mesmos em qualquer cidade do Brasil

Aproveitando a dica de um comentarista (obrigado novamente) , segue abaixo o vídeo Velho Recife Novo. Para os porto-alegrenses, chamo a atenção para a parte referente ao projeto do bairro "Novo Recife" (ao redor dos 10:00 min.). Não parece toda a nossa discussão sobre a renovação do Cais Mauá? No mais, como já diz o título deste post, o vídeo é perfeito para vermos que os processos (e os efeitos sobre a cidade) trazidos pelo capital imobiliário são tremendamente parecidos. Não importa se é no Sul, Sudeste, Nordeste ou qualquer outro lugar.


quarta-feira, 16 de maio de 2012

De novo, a especulação imobiliária



Aproveitando a ilustre companhia de Vladimir Safatle (leia aqui) em seu artigo sobre a especulação imobiliária, volto ao assunto. O mote para Safatle foi uma reportagem da Folha de S. Paulo divulgando uma pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento segundo a qual 62% da população da cidade de São Paulo não tem condições de comprar casa própria. A denúncia lá é a mesma daqui: os imóveis nas grandes cidades brasileiras hoje estão com preços extorsivos, tendo triplicado em São Paulo (em Porto Alegre "só" dobrou) nos últimos quatro anos.

A subida de preços cria uma ilusão em quem já é proprietário de imóvel. É comum vermos manifestações do tipo: "nossa! Meu apartamento valorizou! Está valendo o dobro!". Onde está a ilusão? Vejamos:

Em primeiro lugar, deve ficar claro que estou me referindo àquelas pessoas que possuem somente um imóvel, usado portanto para moradia. Isto vale portanto também para uma ampla parcela da classe média, não somente aos "pobres". E, nunca é demais lembrar, a imensa maioria dos habitantes se encaixam nesta categoria (proprietários de um imóvel para moradia).

Agora vamos supor que, empolgado com a valorização, o casal João e Maria resolva trocar de imóvel. O motivo não interessa: para um apartamento maior porque acabou de nascer o segundo filho, um outro bairro, mais novo, com mais garagens (atualmente, apartamento para a classe média que se preze tem que ter pelo menos duas vagas de garagem - mas isto é assunto para outro post), etc. A partir desta premissa, já dá para adivinhar que o novo apartamento será mais caro que o original, pois todos sonham em "melhorar de vida", seja lá o que isto signifique.

Vamos agora para facilitar, dar preços fictícios aos imóveis, sabendo que em Porto Alegre os preços dobraram nos últimos três anos. Digamos que 3 anos atrás, o imóvel do casal João e Maria valia 100.000 reais. E que o imóvel "dos sonhos" do casal valia 200.000. Há pouco tempo atrás portanto, nosso casal teria que dispor (ou mais provavelmente financiar) os 100 mil de diferença.

Como sabemos que a especulação imobiliária fez os preços dobrarem, o imóvel velho do casal vale hoje 200.000 reais. Mas como o apartamento desejado também acompanhou a subida de preços, ele passa de 200 para 400 mil. Matemática simples: em 3 anos, a diferença entre os imóveis também duplica e o casal agora, ao invés de financiar 100 mil, terá que financiar 200 mil. E tem mais um detalhe que muitos esquecem: qual profissão ou categoria teve 100% de aumento salarial nos últimos 3 anos? Ou seja, a não ser que João e Maria tenham sido promovidos recentemente, seus salários não acompanharam o aumento dos imóveis. O que significa que não só terão que gastar mais para comprar o imóvel novo (de 100 para 200 mil), mas que isto terá um impacto maior no orçamento familiar, representando agora uma parcela maior dos gastos da família do que se tivessem feito a compra 3 anos atrás.

Resultado: todos, inclusive a maior parte da classe média, que pensam no imóvel (e usam) como um lugar efetivamente de moradia, perdem com a especulação imobiliária. A especulação é verdadeiramente uma extorsão, sugando recursos da grande maioria da população para o bolso de poucos.

Nestas horas, dá até para lembrar do mote que tornou o anarquista P. J. Proudhon famoso ainda no século XIX: "a propriedade é um roubo!". Pois não parece?

sábado, 5 de maio de 2012

Mike Davis sobre os espaços públicos


P: Então, é preciso inverter a lógica e criar mais espaços públicos.

R: A abundância pública - representada por grandes parques urbanos, museus gratuitos, bibliotecas e inúmeras possibilidades de interação humana - é uma rota alternativa para uma vida rica baseada em uma sociabilidade que não agride a Terra.

No entanto, prosperidade pública deve ser equilibrada em todas as dimensões socioespaciais. Riqueza cultural e espaço verde geralmente se acumulam em centros inacessíveis para que sejam desfrutados basicamente por turistas e pela alta classe. Em vez disso, a prioridade deve ser construir complexos culturais, educacionais e esportivos que funcionem como centros cívicos para bairros e distritos suburbanos, mesmo que para isso seja preciso suspender os investimentos no centro da cidade. (É evidente que, paralelamente, as maravilhas dos centros devem se tornar acessíveis para todos, por meio de passagens mais baratas e entradas gratuitas).

Maior concentração de atividades essenciais - trabalho, educação, lazer -, por sua vez, possibilita maior densidade residencial em centros distritais e a preservação de espaço aberto nas zonas periféricas. De fato, a sobrevivência ecológica da maioria das cidades depende fundamentalmente da recuperação de bacias e florestas viáveis.

Na dialética californiana, precisamos ser utópicos e holísticos ao mesmo tempo. Atualmente, a crise interna da política ambiental é exatamente a falta de conceitos ousados, que abordem os desafios da pobreza, energia, biodiversidade e mudança climática com uma visão integrada do progresso humano.

Os mais abastados já podem escolher entre grande variedade de projetos ecologicamente corretos, mas qual é o objetivo final: permitir que celebridades se vangloriem de seu estilo de vida com zero emissão de carbono ou levar energia solar, saneamento, clínicas pediátricas, transporte coletivo e, acima de tudo, empregos verdes para as áreas urbanas carentes?

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Mike Davis, Professor da Universidade da Califórnia, é autor de inúmeros livros e artigos. Alguns disponíveis em português: Planeta Favela, ed. boitempo, 2006; Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles, ed. boitempo, 2009; Ecologia do Medo, ed. Record, 2001; Holocaustos coloniais, ed. record, 2002.

O texto acima é um excerto da entrevista publicada na edição nº 181 (abril de 2012) da revista Caros Amigos. Ainda está nas bancas.