segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Fim-de-ano com Leminsky II


     Já disse de nós.
Já disse de mim.
     Já disse do mundo.
Já disse agora,
     eu que já disse nunca.
Todo mundo sabe,
     eu já disse muito.

     Tenho a impressão
que já disse tudo.
     E tudo foi tão de repente.

Paulo Leminsky: O ex-estranho. São Paulo: Iluminuras, 2001, pág. 22.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Fim-de-ano com Leminsky



     O que o amanhã não sabe,
o ontem não soube.
     Nada que não seja o hoje
jamais houve

Paulo Leminsky: O ex-estranho. São Paulo: Iluminuras, 2001, pág. 47

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Aeromóvel até o BarraShopping??


Notícia na imprensa gaúcha:
"A Trensurb assinou ordem de serviços de prestação de consultoria, nesta quinta-feira, para a elaboração de um estudo de demanda para uma linha de Aeromóvel na zona Sul de Porto Alegre. O trajeto previsto soma 9,3 quilômetros de extensão e 10 estações, conectando a Estação Rodoviária às imediações do Hipódromo do Cristal. O custo da obra é estimado em mais de R$ 300 milhões se a base de referência for o custo de R$ 33 milhões por quilômetro construído no aeromóvel do Aeroporto Salgado Filho. 

O estudo deve levar em consideração as alternativas de transporte disponíveis e a forma de financiamento do projeto, que pode ser executado via Parceria Público Privada (PPP), segundo o chefe do Setor de Planejamento e Projetos de Mobilidade Urbana da Trensurb, Euclides Reis. “É um pontapé inicial para um estudo maior. Com base nisso é que poderemos detalhar custos e dificuldades de implantação. Não posso adiantar valores mais precisos”, ressaltou. 

Os estudos devem ser concluídos em aproximadamente 30 dias. O projeto vai ser elaborado pela Matricial Engenharia Consultiva com a colaboração de técnicos da Trensurb e Empresa Pública de Transporte e Circulação (PTC). O valor do contrato de prestação de consultoria é de R$ 22 mil. 

Já o aeromóvel que liga o Aeroporto e a estação Aeroporto do Trensurb está com 90% da construção pronta. Ainda assim, a obra deve ser entregue somente no primeiro semestre de 2013. Com menos de 1 quilômetro de extensão, teve início em agosto do ano passado." (Correio do Povo – link aqui)
Perguntinha rápida: quem sabe ao invés de fazer um estudo sobre a viabilidade de estender o Aeromóvel ao BarraShopping Sul (afinal, é disto que se trata), não se faz um estudo sobre rotas viáveis para o Aeromóvel em toda a cidade? Neste sentido: quais rotas teriam demanda para que o Aeromóvel possa complementar o sistema de ônibus existente? Por que não estudar a rota pela Ipiranga até a PUC ou mesmo o Campus do Vale da UFRGS como propôs recentemente um candidato “nanico” à prefeitura de Porto Alegre? Por que esta rota especificamente?

Não precisam me pagar os R$ 22.000,00 de consultoria para que eu responda (e não é necessário nenhum estudo detalhado): com certeza há rotas melhores do que esta, onde circula mais gente e passa por áreas mais povoadas.

Aliás, não estaria na hora de começar a ser divulgado estudos sobre como ficará Porto Alegre com a implantação dos BRTs?

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Dave Brubeck


Um dia antes de completar 92 anos, morreu hoje, 05/12/2012, Dave Brubeck. Como sempre digo por aqui, nada de muitas palavras; a melhor homenagem é a própria obra. Então, nada mais justo que um dos maiores clássicos do Jazz, Take Five. O curioso é que a composição é de outro gigante, Paul Desmond - o sax que acompanhou e ajudou a moldar o Dave Brubeck Quartet - mas até hoje muitos tributam esta composição erroneamente à Dave Brubeck. Com certeza é porque a canção se tornou marca registrada do grupo.

Chega. Agora vejam e escutem:

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A Copa 2014 e Porto Alegre

Cartaz oficial da Sede Porto Alegre Copa 2014

Faltando pouco mais de 1 ano e meio para a Copa do Mundo aportar na cidade, as obras projetadas começam a tomar corpo e aparecer no cotidiano dos cidadãos. Há modificações nos corredores de ônibus e no próprio sistema de transporte coletivo, obras de estádios, duplicação e alargamento de importantes vias urbanas, construção de viadutos e passagens de nível.

Qual o significado disto para a cidade? O que são estas obras? Onde estão localizadas? Qual a relação entre isto tudo que anda acontecendo em Porto Alegre e o projeto de cidade que está por trás da política de "Governança Solidária Local"?

Um primeiro balanço e início de discussão pode ser encontrada no trabalho Governança e gestão urbana: Copa do Mundo FIFA 2014 em Porto Alegre, apresentado durante o III Encontro Internacional de Ciências Sociais: crise e emergência de novas dinâmicas sociais em Pelotas/RS em outubro de 2012. O texto foi escrito em uma parceria de Lucimar F. Siqueira e o autor destas linhas.

Para os interessados, o trabalho completo pode ser acessado neste link

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Porto Alegre antiga - Acervo do IBGE

Como se já não bastasse a quantidade quase infinita de dados censitários, geográficos e econômicos disponíveis no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, do acervo de mais de 80.000 fotos da biblioteca existem 22.079 disponíveis on-line. Boa parte do acervo foi constituído num período em que o IBGE promovia saídas de campo e financiava excursões de estudo sobre a realidade brasileira. Aliás, nesta época também editava duas revistas sobre geografia (o Boletim Geográfico e a Revista Brasileira de Geografia) e mantinha vários pesquisadores geógrafos em seus quadros. Para lembrar apenas de um, posso citar Roberto Lobato Corrêa.

Hoje, como dá para imaginar, este papel ficou com as Universidades. Felizmente este riquíssimo acervo pode não só ser conferido na biblioteca física, mas no site. Link aqui.

E algumas fotos de Porto Alegre como amostra do que pode ser encontrado lá:


Vista em direção ao guaíba

Vista parcial com início de verticalização

Porto Alegre bucólica: casario antigo

Vista da Borges de Medeiros

Vista da Rodoviária nova

Chegando em Porto Alegre...

Av. Farrapos

Av. Independência

R. Ramiro Barcelos

r. General Portinho

Antiga rua Avaí

Residência no bairro Petrópolis

Por fim, deixando Porto Alegre: BR 116 um pouco depois de passar a "ponte nova" sobre o Guaíba, em direção à cidade de Guaíba.

As fotos estão sem data porque não consta esta informação no acervo disponível on-line. Assim como também não aparecem os autores das fotografias.

P.S.: ainda existem Geógrafos no IBGE. O que mudou foi que aos poucos a expansão do sistema universitário assumiu boa parte da pesquisa de cunho mais acadêmico.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Porque o futebol NÃO deve funcionar como uma empresa


Toda vez que um clube de futebol vai mal nos campeonatos do qual participa e/ou está em época de eleição de nova diretoria – caso do Sport Club Internacional neste exato momento – brande-se aos quatro ventos palavras de ordem como: “Profissionalização!” e “clubes devem funcionar como empresas!”. Citei o caso do Inter só porque moro em Porto Alegre e é impossível não ler/ouvir coisas como estas nas últimas semanas. Mas isto serve com certeza para a situação dos clubes em todo o Brasil.

Mas vamos adiante: o que tem de errado neste brado pela profissionalização e empresariamento do futebol? Ora, ao contrário do que a maioria imagina, ele já funciona assim. Há clubes mal administrados? Com certeza, mas eles são profissionais sim e aliás, como nos sonhos dos economistas liberais clássicos, todos eles estão em concorrência – afinal competem em Campeonatos – para ver quem é o campeão todos os anos. Na verdade, o futebol é muito mais “capitalista” do que o funcionamento empresarial. Isto porque neste último, a concorrência e o próprio funcionamento do mercado levam à uma concentração/centralização do capital em algumas poucas e grandes empresas. Vamos lembrar de alguns setores da economia: Automóveis? Aviação? Petróleo? Setor de bebidas? Alimentos industrializados? Existem poucas empresas que dominam o mercado, são mundiais e gigantes em tamanho.

Transpor isto para o futebol literalmente acabaria com a “concorrência”, ou se quisermos, com a competição. Exemplo? Simples: alguém por acaso não sabe antes de começar o campeonato espanhol que o campeão será ou o Barcelona ou o Real Madrid? Futebol de mercado acaba com a concorrência: só os ricos serão campeões. No Brasil, a profissionalização do futebol trouxe a diferenciação entre os clubes, com certeza há clubes mais ricos e outros mais pobres, mas mesmo assim todos hão de concordar que poderiam ser nomeados no mínimo dez clubes que entram no campeonato brasileiro pensando em ganhá-lo. Em outras palavras: existe concorrência. Esta é uma contradição que os favoráveis ao mercado esquecem: o capitalismo, quando se desenvolve, mata a concorrência e tende ao monopólio.

Agora vamos imaginar se o futebol funcionasse exatamente como as empresas de outros ramos da economia capitalista:

a) É preciso dar lucro, senão a empresa fecha. Só aí, mataríamos mais da metade (e estou sendo otimista) dos clubes de futebol no Brasil. De onde viriam e se formariam os jogadores?

b) Mesmo que todos os dirigentes se profissionalizassem, qual é a estatística oficial sobre a sobrevivência de empresas no Brasil e no mundo? Segundo pesquisa do SEBRAE, a taxa de sobrevivência de empresas no País depois de 2 anos de sua constituição é de 73,1% (ver pesquisa aqui). E olha que, por conta do bom momento da economia brasileira dos últimos anos, esta taxa é maior que de muitos países da OECD. Na Holanda por exemplo, a taxa de sobrevivência depois de 3 anos é em torno de 40% (ver resumo estatístico em inglês aqui). Portanto o resultado assim como no item acima é clubes fechando.

c) Do ponto de vista da mão-de-obra (ou melhor, “pé-de-obra”) já funcionamos como mercado: os melhores jogadores ficam nos clubes mais ricos, mas só até o momento em que ele se valoriza o suficiente para ser vendido para um clube mais rico ainda, normalmente na Europa. Isto significa rotatividade e dificuldade de formar uma equipe coerente, com jogadores que se conheçam e possam atuar juntos por um período de tempo suficiente para o time atingir o máximo de rendimento. Se todos os anos os jogadores mudam – e normalmente com a saída dos melhores – como querer que o time jogue bem? Em qualquer esporte coletivo, leva anos para levar uma equipe ao auge. Mas no futebol isto não é mais possível.

Resumindo: o futebol como empresa tem como resultado fechamento da maioria dos clubes, concentração de poder (e capacidade de ganhar campeonatos) nas mãos de um ou dois clubes, alta rotatividade de jogadores e pouca “paixão”/identidade. Você torceria para um clube coca-cola? A torcida existe exatamente porque Clubes não são empresas, o nome já diz, são Clubes, associações com fins esportivos, não lucrativos.

Por fim, já que este post está ficando um pouco longo, olhemos para os EUA e seus clube-empresas. O que acontece por lá? Ora, este mercado é altamente regulado, muito mais do que os “clubes” no Brasil. Os times (de futebol americano, basquete, etc) são empresas? Sim. Tem proprietários? Sim. Mas para que haja competitividade, existem tetos salariais para os clubes (o que significa que ele pode até contratar um ou dois grandes jogadores, mas nunca um time inteiro) e todo um sistema de contratação/renovação de jogadores que funciona simplificadamente da seguinte forma: os Clubes com pior desempenho no ano anterior (os últimos colocados) tem prioridade para contratar os melhores novatos vindo das Universidades. Ou seja, ao contrário do futebol brasileiro/europeu, os piores clubes tem a chance de contratar os melhores jogadores. Assim, eles não serão eternamente os piores clubes! O que quero dizer com isso? O melhor exemplo de empresariamento do esporte é também um exemplo de mercado fortemente regulado. Nem nos EUA o esporte funciona com “livre-mercado”. O mercado não é livre. Por que não seguimos este exemplo?

Em resumo, não está na hora de bradarmos pelo funcionamento empresarial do futebol, está na hora é de regularmos fortemente este mercado. Só assim o futebol terá futuro no Brasil.


P.S.: Tem dirigente ladrão no Brasil? Sim, mas eles tem exemplos para seguir no brilhante mundo das empresas privadas. Ora, o que foi o caso das empresas financeiras que quebraram com a última crise, afundaram a economia de vários países, acabaram com a poupança para aposentadoria de milhares de famílias nos EUA, fizeram outras milhares perderem suas casas e mesmo assim seus dirigentes saíram com “bônus” de desempenho de vários milhões de dólares? Isto não é roubo? Isto sim é funcionamento de mercado. É isto que queremos?

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Miles Davis: o último show

Salvo engano, o trecho abaixo é da última apresentação filmada de Miles Davis. Gravada em Viena - Áustria no dia 1º de julho de 1991 no Vienne Roman Theater. Miles faleceu no dia 28 de setembro do mesmo ano. Então, se não foi a última, com certeza esteve entre as derradeiras apresentações.

A destacar:
a) A banda. Como sempre, Miles estava cercado por excepcionais músicos. Ele nunca escolheu membros para sua banda que não fossem no mínimo acima da média;
b) O solo esplendoroso do saxofonista Kenny Garret;
c) O fato de Miles - como fez a vida toda - ficar de costas para o público. Ele sempre reforçou que quem merecia atenção eram os músicos, não quem estava olhando na platéia. Por isso ele prestava atenção e dialogava somente com... os músicos!

No mais, aumente o volume e escute uma das maiores lendas da música do século XX.


terça-feira, 9 de outubro de 2012

Neil Smith e a Geografia



Neil Smith (1954-2012) faleceu precocemente. Foi sem dúvida um dos mais destacados geógrafos radicais anglo-saxões (lá, "geógrafo radical" corresponde ao que no Brasil conhecemos como "geografia crítica").

A melhor homenagem para um intelectual é que suas idéias continuem circulando, que sejam lidas e debatidas. Pouco do que ele produziu foi traduzido para o português. Dentre os livros, Desenvolvimento desigual apareceu na nossa língua em 1988 publicado pela Bertrand Brasil. Apesar de esgotado, dá para encontrá-lo nas bibliotecas das Universidades Públicas. O livro teve um papel importante para a formação de muitos geógrafos no Brasil, principalmente porque parte de dois princípios até hoje intensamente debatidos: 
a) não há uniformidade - social, espacial ou mesmo escalar - no desenvolvimento do capitalismo. A geografia do capitalismo produz a desigualdade;
b) A produção da natureza é inseparável da produção do espaço; a produção da natureza é um dos resultados reais do desenvolvimento do capitalismo.

Além deste, Neil Smith também escreveu: The New Urban Frontier: the gentrification and the revanchist city (ele foi um dos pioneiros da discussão sobre os processos de renovação e "enobrecimento" de áreas centrais das cidades); American Empire: Roosevelt's geographer and the prelude to globalization e The endgame of globalization.

Dos inúmeros artigos em periódicos, vou destacar em Português o que eu traduzi. Quem manda nesta fábrica de salsicha? foi publicado em 2003 na revista Geosul e é uma forte crítica à privatização do ensino, da Universidade e da Geografia. Link aqui.

Neil Smith também foi por muitos anos co-editor da revista Environment and Planning D: Society and Space. Por isso, em sua homenagem, o periódico liberou o acesso (grátis) para os seguintes artigos:

Neil Smith, 1987, “Of yuppies and housing: gentrification, social restructuring, and the urban dreamEnvironment and Planning D: Society and Space 5(2) 151 – 172
Neil Smith, 2000, Global Seattle Environment and Planning D: Society and Space 18(1) 1 – 5
Neil Smith, 2001, “Scales of terror and the resort to geography: September 11, October 7” Environment and Planning D: Society and Space 19(6) 631 – 637
Neil Smith, 2000, “What happened to class?Environment and Planning A 32(6) 1011 – 1032
Cindi Katz and Neil Smith, 2003, “An interview with Edward SaidEnvironment and Planning D: Society and Space 21(6) 635 – 651
Neil Smith, 2007, “Another revolution is possible: Foucault, ethics, and politicsEnvironment and Planning D: Society and Space 25(2) 191 – 193
Naomi Klein and Neil Smith, 2008, “The Shock Doctrine: a discussionEnvironment and Planning D: Society and Space 26(4) 582 – 595

Em resumo: boa leitura à todos!

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Foucault e a geografia


Pequeno trecho da célebre entrevista de Michel Foucault à revista Hérodote, publicada originalmente no histórico primeiro número do periódico em 1976. Foi traduzida para o português e incluída na coletânea de textos Microfísica do Poder, Rio de Janeiro: Graal, 4ª edição, 1984. Págs. 153-165.
Hérodote: O que se deve enfatizar, a respeito de certas metáforas espaciais, é que elas são tanto geográficas quanto estratégicas, e isso é muito normal visto que a geografia se desenvolveu à sombra do exército. Entre o discurso geográfico e o discurso estratégico, pode-se observar uma circulação de noções: a região dos geógrafos é a mesma que a região militar (de regere, comandar) e província o mesmo que território vencido (de vincere). O campo remete ao campo de batalha…

Michel Foucault: Reprovaram-me muito por essas obsessões espaciais, e elas de fato me obcecaram. Mas, através delas, creio ter descoberto o que no fundo procurava: as relações que podem existir entre poder e saber. Desde o momento em que se pode analisar o saber em termos de região, de domínio, de implantação, de deslocamento de transferência, pode-se apreender o processo pelo qual o saber funciona como um poder e reproduz seus efeitos. Existe uma administração do saber, uma política do saber, relações de poder que passam pelo saber e que naturalmente, quando se quer descrevê-las, remetem àquelas formas de dominação a que se referem noções como campo, posição, região, território. E o termo político-estratégico indica como o militar e o administrativo efetivamente se inscrevem em um solo ou em formas de discurso. Quem encarasse a análise dos discursos somente em termos de continuidade temporal seria necessariamente levado a analisá-la e encará-la como a transformação interna de uma consciência individual. Construiria ainda uma grande consciência coletiva no interior da qual se passariam as coisas.
Metaforizar as transformações do discurso através de um vocabulário temporal conduz necessariamente à utilização do modelo da consciência individual, com sua temporalidade própria. Tentar ao contrário decifrá-lo através de metáforas espaciais, estratégicas, permite perceber exatamente os pontos pelos quais os discursos se transformam em, através de e a partir das relações de poder.  
Hérodote: Althusser, no Ler o Capital, coloca uma questão análoga: "o recurso às metáforas espaciais, de que (…) o presente texto faz uso, coloca um problema teórico: o das suas condições de existência em um discurso com pretensão científica. Este problema pode ser exposto da maneira seguinte: por que um certo tipo de discurso requer necessariamente o uso de metáforas retiradas de discursos não-científicos?" Althusser apresenta assim o recurso às metáforas espaciais como necessário, mas ao mesmo tempo como regressivo, não rigoroso. Tudo leva a pensar, ao contrário, que as metáforas espaciais, longe de serem reacionárias, tecnocráticas, abusivas ou ilegítimas, são antes de tudo o sintoma de um pensamento "estratégico", "combatente", que coloca o espaço do discurso como terreno e objeto de práticas políticas.  
Michel Foucault: É efetivamente de guerra, de administração, de implantação, de gestão de um saber que se trata em tais expressões. Seria necessário fazer uma crítica dessa desqualificação do espaço que vem reinando há varias gerações. Foi com Bergson, ou mesmo antes, que isso começou. O espaço é o que estava morto, fixo, não dialético, imóvel. Em compensação, o tempo era rico, fecundo, vivo e dialético.
A utilização de termos espaciais tem um quê de anti-história para todos que confundem a história com as velhas formas de evolução, da continuidade viva, do desenvolvimento orgânico, do progresso da consciência ou do projeto da existência. Se alguém falasse em termos de espaço, é porque era contra o tempo. É porque "negava a história", como diziam os tolos, é porque era "tecnocrata". Eles não compreendem que, na demarcação das implantações, das delimitações, dos recortes de objetos, das classificações, das organizações de domínios, o que se fazia aflorar eram processos - históricos certamente - de poder. A descrição espacializante dos fatos discursivos desemboca na análise dos efeitos de poder que lhe estão ligados.
 Foucault em seu escritório

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Cavalos X Carroças

Estamos, aqui no Rio Grande do Sul, em plena semana farroupilha. Sobre o significado de se comemorar (??) uma data e um acontecimento como este, nem me darei o trabalho de escrever. Muita gente tem sistematicamente escrito e criticado a efeméride e acredito inclusive que fazem isto melhor que eu. Para quem não leu, recomendo o texto do Cristóvão Feil, que você pode ler aqui.
Mas, para não deixar passar em branco, vamos comparar duas coisas que acontecem pela mui leal e valorosa cidade de Porto Alegre.

a) Como todos os jornais e portais de notícias divulgaram, calcula-se que nesta quinta dia 20 de setembro, durante o feriado e desfile farroupilha, 10.000 pessoas e mais ou menos 4.500 tradicionalistas a cavalo desfilaram e passearam pela cidade em direção aos Parques Marinha do Brasil e Harmonia. Sim, mais de 4.000 cavalos andaram para lá e para cá pelas ruas da cidade.

Foto: Miguel Noronha/Agência Freelancer


b) No segundo semestre de 2008, a Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou um projeto de lei que instituiu o programa de redução gradativa dos veículos de tração animal (VTAs) e de tração humana (VTHs), estabelecendo um prazo de oito anos para se chegar à proibição total e definitiva. Em outras palavras: em nome do higienismo e do bem-estar dos animais, se proibiu carroças na cidade. Uma das intenção é que durante a Copa do Mundo em 2014 estrangeiros não vejam estas "cenas vergonhosas".




Pergunta simples: por que gaúcho à cavalo pode e carroceiro não? Por que a primeira cena é aceitável e a segunda não? Por acaso, só por acaso, teria relação com o fato de que os carroceiros são pobres?

sábado, 15 de setembro de 2012

Jazz - Imagens

Imagens para um sábado à noite:


John Coltrane no Olympia em Paris - 1962

Dizzy Gillespie olhando Ella Fitzgerald cantar

Sem palavras

Thelonious Monk

Chapéu de Lester Young - foto de Herman Leonard

E por fim, uma das imagens mais icônicas do Jazz: Dexter Gordon fotografado por 
Herman Leonard (um dos mais icônicos fotógrafos do século XX):


Depois disso, abra um vinho, coloque Kind of Blue - de preferência em vinil - para rodar, apague a luz e... escute, simplesmente escute. E assim o sábado termina perfeito.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Geografia: Teoria e Crítica; o saber posto em questão



Em 1982, há 30 anos portanto, foi editado pela Vozes um livro organizado por Ruy Moreira intitulado Geografia: Teoria e Crítica; o saber posto em questão. O volume reuniu alguns dos textos de geógrafos brasileiros produzidos no período entre 1978 e 1981, ou seja, numa conjuntura de lenta abertura política que desembocaria na campanha das "diretas já" alguns anos depois. Do ponto de vista da Geografia, foi o período imediatamente posterior ao já quase mítico Encontro da AGB em Fortaleza/1978 que marcou a ruptura e renovação da Associação dos Geógrafos e da própria Geografia brasileira.

Em primeiro lugar, é preciso entender o próprio contexto da geografia como um todo na época. Para aqueles como eu recém-chegados (Vestibular em 1982 e começo de curso de Geografia na UFRGS em 1983), havia uma falta enorme de livros com conteúdo atualizado e contemporâneo. A maioria dos livros editados no Basil eram traduções de manuais de uma Geografia, digamos, "tradicional". Era época de Jean Brunhes, Jacqueline Beaujeu-Garnier, Pierre George, etc. Assim, estávamos ávidos por outros tipos de livros. Foi o período em que circulava a edição "pirata" impressa pela União Paulista de Estudantes de Geografia do livro de Yves Lacoste A Geografia serve antes de mais nada para fazer a guerra e que dois livros serviam quase como uma guerrilha informal (e complementar ao Lacoste) dos estudantes para a renovação da Geografia: O que é Geografia também de Ruy Moreira editado na coleção primeiros passos da brasiliense e Geografia: pequena história crítica de Antônio Carlos Robert Moraes publicado pela HUCITEC.

Portanto, Geografia: teoria e crítica também se tornou um clássico, e isto fica facilmente visível se olharmos os autores/textos publicados. O livro tem 18 capítulos, divididos em duas partes: A Crítica Teórica e Fazendo a releitura da sociedade. Alguns exemplos: Milton Santos: "Geografia, Marxismo e subdesenvolvimento"; Ariovaldo Umbelino de Oliveira: "O 'econômico' na obra Geografia Econômica de Pierre George: elementos para uma discussão"; Ruy Moreira: "A Geografia serve para desvendar máscaras sociais"; Carlos Walter Porto-Gonçalves: "A Geografia está em crise: viva a Geografia!"; Roberto Lobato Correa: "Repensando a teoria das localidades centrais"; Armando Corrêa da Silva: "O Espaço como Ser: uma auto-avaliação crítica".

Foi uma época em que se publicava porque efetivamente se queria uma difusão do conhecimento e das inquietação produzidas; hoje se publica (muitas vezes, mas é verdade que nem sempre) porque é uma obrigação acadêmica e para poder colocar no Lattes… Como se vê, objetivos diferentes. 


Da mesma forma, não se lia textos à época simplesmente para cumprir obrigações com colegas e Orientadores e poder cumprir o ritual acadêmico de infindáveis citações. Se lia (ou pelo menos vários de nós líamos) porque aprender e trocar idéias era o objetivo.

Enfim, fica aqui uma lembrança ao livro, seus autores e especialmente a Ruy Moreira, cuja paixão e interesse por uma Geografia efetivamente crítica não esmoreceu com o passar dos anos.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Trilha sonora para uma revolução

Neste momento em que as leis e políticas de cotas nas Universidades públicas brasileiras causam reações e urticária em muita gente, vale a pena ver este documentário sobre a luta pelos direitos civis nos EUA durante os anos 60. Entre outras coisas, para lembrar que as tais "liberdade" e "democracia" se conquistam, não são dadas. 

E, não posso deixar de mencionar, a trilha sonora é belíssima.

Então, Soudtrack for a revolution:



sábado, 18 de agosto de 2012

I fought the law


THE CLASH:

"Breakin' rocks in the hot sun

I fought the law and the law won
I needed money 'cause I had none
I fought the law and the law won"


Não, não acordei exatamente de bom humor. Então, está na hora de um clássico do inconformismo.

"Revolution Rock, i am in a state of shock"
E a capa... poucas transmitem tanta energia:


É isso.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Sobre a Greve: nota rápida



Se for permitido escolher um exemplo fora da esfera da produção material, então um mestre-escola é um trabalhador produtivo se ele não apenas trabalha as cabeças das crianças, mas extenua a si mesmo para enriquecer o empresário. O fato de que este último tenha investido seu capital numa fábrica de ensinar, em vez de numa fábrica de salsichas, não altera nada na relação. (Karl Marx, O Capital, cap. XIV do Livro I)

Desde que a Greve dos Professores das Universidades Federais começou, um coisa me espanta e outra incomoda. Melhor dizendo, continua a me espantar, pois na verdade são coisas que se repetem há anos.

a) Quando se fala genericamente de educação, todos - praticamente sem exceção - dizem que os professores e a educação devem ser valorizados, que é um absurdo no Brasil isto não acontecer e blá, blá, blá. Mas aí as Universidades Federais entram em greve, o Governo maquiavelicamente divulga uma proposta de reajuste que dá a entender que agora os Professores vão ganhar muito bem e… o que nos temos? Uma enorme quantidade de gente reclamando que os Professores das Federais não passam de uns privilegiados que nem deveriam pensar em greve, pois afinal, já ganham mais do que outros professores. Para completar vem o clássico: "ganham muito mais que os professores das escolas estaduais, um absurdo!" ; "Como é que eles podem reclamar?" ; "deveria se privilegiar o ensino primário e médio" , etc. etc.

O que tem de errado nisto tudo? Seguindo o raciocínio, a contradição é evidente com a conversa inicial de "valorizar a educação". Pois estão afirmando que não só o Professor deve ganhar pouco, mas que como o ensino público primário e secundário tem problemas, as Universidades Federais não deveriam ser boas! Que ganhar um salário minimamente digno é uma afronta às outras categorias, tanto de Professores quanto de outras profissões. Ora, é exatamente o contrário: o fato de as Universidades públicas terem um bom nível deve servir de prova que é possível sim haver ensino público de qualidade. Além do mais, não é só uma questão de luta pela educação: a luta deve ser, entre outras coisas, por uma melhor distribuição da riqueza gerada neste país. Aumentar os salários dos trabalhadores, qualquer que sejam eles, tem este efeito. Salários dignos significam melhor distribuição de renda, significam sinalizar para a sociedade que se está valorizando quem trabalha, não quem vive de renda (como é hoje em dia).

Professor Universitário ganhando bem é uma sinalização para outras categorias de professores que é possível sim valorizar a educação. E antes que alguém reclame: não, não dá para usar como justificativa contrária a um reajuste digno o fato - verdadeiro - que existem maus professores. Não se combate maus professores punindo toda uma categoria com baixos salários. É impressionante como se usa isto como desculpa. Aliás, é a mesma desculpa esfarrapada que é usada para não apoiar a construção de moradias populares dignas. O que se diz mesmo? "O Governo constrói casa, dá para estes pobres e eles vendem e voltam a morar na favela". Existem casos como estes? Sim, mas 99% das pessoas que estão nos diversos programas existentes de moradias populares não fazem isso. Com os professores é a mesma coisa: a grande maioria quase se mata trabalhando e isto é que é o errado. Errado não é Professor de Universidade Federal ter menos turmas que outras categorias de Professores. Rotundamente errado é o professor primário/secundário ter que se submeter a dar 60 horas semanais (e existem vários casos assim) para ganhar um salário próximo ao que os Professores Universitários ganham.

Em outras palavras: a luta é para aumentar o salário e melhorar as condições de trabalho de todos - professores e outros profissionais assalariados -, e não ficar reclamando que os que conseguem ganhar um pouquinho melhor deveriam ganhar menos e não entrar em greve (porque é isto, como já disse antes, que se está afirmando).

b) No que me incomoda, pergunta rápida: Por que a Pós-Graduação quase nunca entra em greve? Por que os mais atingidos pelas paralisações são sempre os alunos de graduação? O sistema de Pós por acaso está uma maravilha? Sempre se fala que "o bolsista de pós não pode ser prejudicado, pois sua bolsa não tem prorrogação". Ok, mas por que raciocínios parecidos não servem para a graduação? 


Resposta também rápida: na Pós-Graduação, o produtivismo venceu.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Chevrolet gaúcho? Hã?


Manchete da Zero Hora (clique para ver):

Chevrolet gaúcho chegará às lojas ainda neste ano

Realmente, tem coisas que só acontecem no Rio Grande do Sul e, ao contrário do tal "orgulho de ser gaúcho", deveriam envergonhar quem mora por aqui.

Chevrolet gaúcho? Que raios é isso? 
a) A General Motors é uma estatal do Rio Grande do Sul?
b) Pelo menos pertence a algum empresário gaúcho?
c) Não repatria seus lucros para os Estados Unidos e investe-os aqui no RS?
d) Paga todos os impostos sem nenhum tipo de isenção fiscal ajudando o Estado a investir em educação, saúde e segurança?
e) Cobra preços justos e compatíveis com os produtos "modernos" que produz aqui?

Se você respondeu "não" a todas as perguntas anteriores, pode me explicar por que a Zero Hora se dá ao trabalho de fazer propaganda de graça para uma empresa estrangeira que por acaso tem uma fábrica localizada na cidade de Gravataí? E veja bem, a GM não está aqui por causa do orgulho gaúcho, está aqui porque lhe foram oferecidas (pelo Estado, portanto paga por todos os moradores) condições para lucrar de forma que ela não lucra nos Estados Unidos, por exemplo.

Que bobagem é essa de "carro gaúcho"? Ele só será vendido em Porto Alegre, por acaso? O novo modelo foi desenhado pelo Nico Fagundes?

Sob nenhum critério a GM é gaúcha, mesmo que se aceite que existe um "ser gaúcho" e que isto não é uma tradição inventada, nas palavras bem colocadas de Eric Hobsbawn. Portanto, é uma pura questão de ideologia chamar carros fabricados aqui por empresas estrangeiras de "carro gaúcho". Seria porque a GM é um dos grandes anunciantes da ZH? Ou...?

E… para completar, esqueceram de dizer que ao mesmo tempo em que se propagandeia o "carro gaúcho", a mesma empresa ameaça a demissão de 1500 funcionários na fábrica em São José dos Campos. Mas como lá não é o Rio Grande do Sul, isto parece não importar para a Zero Hora, não é mesmo? Lá não se fabricam "carros gaúchos".

Patético.

domingo, 8 de julho de 2012

Eleições, armadilha para imbecil

                                                               Um dos famosos cartazes do maio de 68 na França

Nesta época em que recomeçam as campanhas eleitorais no Brasil, a frase título deste post é forte (para dizer o mínimo). Mas não é minha: foi um dos slogans do maio de 68 francês, tão pródigo em frases de efeito e esperanças revolucionárias. Foi relembrada por Alain Badiou, no seu balanço sobre o Maio de 68 recentemente publicado em português no livro A hipótese comunista (São Paulo: boitempo, 2012). Aliás, ele lembra que logo depois do fim das agitações e mobilizações que sacudiram a França, o Governo conseguiu realizar eleições e o resultado foi… 
"a Câmara mais reacionária que já se viu! Estava claro para todo mundo que o dispositivo eleitoral não é apenas, e nem mesmo principalmente, um dispositivo de representação: ele é também um dispositivo de repressão dos movimentos, das novidades, das rupturas." (pág. 36)
Esta é uma das questões que deve ser sempre lembrada nestas épocas: política é muito mais que eleições. Desde que o PT chegou ao poder, parece que a esquerda (ou boa parte dela) só vive de discutir estratégias eleitorais. Discutir unicamente estratégias eleitorais dá nisso: foto de Lula com Maluf. Não sei o que foi pior, o fato (ou foto) em si ou a gigantesca discussão petismo/anti-petismo que emergiu depois disso. Na verdade, o que aconteceu é que a esquerda aceitou como normal os termos de um debate para lá de simplório, que consiste em: "se não aceitarmos nos coligar ou receber o apoio de X ou Y, a direita volta ao poder e vai ser um horror". E assim vamos. Aliás, ouso dizer que este é um dos motivos do amplo ataque da Veja e congêneres ao PT (o famoso "PIG" - Partido da Imprensa Golpista). Ora, se o PT está promovendo claramente o aprofundamento do mercado de consumo e do capitalismo no Brasil, inclusive de uma forma que poucos antes conseguiram, por que eles (PIG) seriam contra? Não é só preconceito de classe. Na verdade, eles estão enquadrando os termos do debate, enquadrando e limitando possíveis avanços da esquerda e fazendo com que a esquerda, ao invés de se preocupar com ultrapassar os limites estabelecidos (um dos verdadeiros sentidos em ser de esquerda), simplesmente fique a maior parte do tempo… defendendo o Governo de ataques! É muito pouco e é muito limitado.

Por estas razões, continuemos nas incitações de Badiou, pois serve para lembrar que a tarefa da esquerda não deve ser só "defender Governos", ainda que os nossos governos.

Tem uma parte do livro em que as metáforas geográficas aparecem, onde ele reflete sobre a marcha estudantil e a ocupação da fábrica de Chausson e diz que uma das conseqüências disto tudo foi a busca por uma outra política:
"Nós compreendemos naquele momento, sem ainda compreender totalmente, ali, na fábrica da Chausson, que se uma política de emancipação nova era possível, ela seria uma reviravolta nas classificações sociais, não consistiria em organizar cada um em seu lugar, mas, ao contrário, organizaria deslocamentos, materiais e mentais, fulminantes.
Contei a vocês a história de um deslocamento cego. O que nos movia era a convicção de que era necessário acabar com os lugares. Em sentido geral, é o que implica a bela palavra 'comunismo', sociedade igualitária, sociedade que, por seu próprio movimento, derruba os muros e as separações, sociedade da polivalência e dos trajetos variáveis, tanto no trabalho quanto na vida. Mas 'comunismo' também quer dizer formas de organização política cujo modelo não é a hierarquia dos lugares. (pág. 38)
Dez anos depois, tudo volta ao modelo clássico na França:
"Voltamos ao 'cada um em seu lugar' característico deste modelo: os partidos de esquerda, se podem, governam, os sindicatos reivindicam, os intelectuais intelectualizam, os operários ficam nas fábricas, etc." (pág. 38)
De novo, voltamos ao enquadramento do debate político atual no Brasil: aqui, estamos seguindo também este modelo de cada um no seu lugar. Para bagunçar estes lugares, "devemos ter a coragem de ter uma idéia": 
"O que é decisivo, em primeiro lugar, é manter a hipótese histórica de um mundo livre da lei do lucro e do interesse privado. Enquanto estivermos sujeitos, na ordem das representações intelectuais, à convicção de que não podemos acabar com isso, que essa é a lei do mundo, nenhuma política de emancipação será possível. É isso que propus chamar de hipótese comunista." (pág. 39)

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Paisagens urbanas

"A paisagem é a geografia compreendida como o que está em torno do homem, como ambiente terrestre. Muito mais que uma justaposição de detalhes pitorescos, a paisagem é um conjunto, uma convergência, um momento vivido, uma ligação interna, uma 'impressão' que une todos os elementos" (pág. 30)




"A paisagem se unifica em torno de uma tonalidade afetiva dominante, perfeitamente válida ainda que refratária a toda redução puramente científica. Ela coloca em questão a totalidade do ser humano, suas ligações existenciais com a Terra, ou, se preferirmos, sua geograficidade original: a Terra como lugar, base e meio de sua realização." (pág. 31)




"Uma verdade emerge da paisagem, contudo não como teoria geográfica ou mesmo como valor estético, mas como expressão fiel da existência, e é assim que os alinhamentos megalíticos, um castelo feudal, constituem parte integrante da geografia local como testemunhos de uma presença humana que dá sentido ao seu entorno. (...) A paisagem pressupõe uma presença do homem, mesmo lá onde toma a forma de ausência. Ela fala de um mundo onde o homem realiza sua existência como presença circunspecta e atarefada." (pág. 32)


Todas as citações são de Eric Dardel. O homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: perspectiva, 2011.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Pérolas do Cotidiano



Certas coisas ficam tão comuns no dia-a-dia que sequer nos damos conta de como elas se aproximam da estupidez. Alguém já reparou que hoje em dia é quase impossível tentar fazer um lanche em uma cidade como Porto Alegre sem que o "salgado" seja aquecido no microondas?

O resultado, todos vão lembrar, é que fazer um lanche fora de casa significa, quase certamente, comer algo com a consistência de borracha, completamente mole e ainda por cima fervendo por dentro! Não importa o que seja: um risoles, esfiha, pão de queijo, pastéis variados de forno, empada. Pense no que você quiser. A aparência no balcão refrigerado sempre é bonita, mas o microondas transforma tudo em algo com gosto uniforme, indistinguível e artificial. Aliás, parece hambúrguer do McDonald's. Uma massa de comida em que não sabemos onde termina o gosto do pão e começa o gosto da carne. Ok, voltando (já que o objetivo não é falar de McDonald's): o paradoxo é que isto não é só uma característica de lugares e lancherias "populares", digamos assim. Tente comer um simples pão-de-queijo com café num Shopping, por exemplo. A praga do microondas está em todo lugar! Até mesmo naqueles lugares metidos à besta que cobram fortunas por um petisco qualquer.

Isto não tem nada a ver com "a pressa da cidade moderna". Tem a ver é com preguiça dos restaurantes/lanchonetes e acomodação dos consumidores. Henri Lefebvre já dizia que vivemos numa sociedade burocrática de consumo dirigido. Ele, evidentemente, não pensou no que estou chamando "praga de microondas". Mas comer fora virou algo puramente burocrático: como não temos tempo, engolimos qualquer coisa simplesmente para a fome passar. Por isto aceitamos como "normal" a comida molengo-emborrachada do microondas. É burocrático. E é um consumo dirigido.

Vejam bem: começamos com uma simples crítica do uso do microondas, mas é revelador do nosso cotidiano e da necessidade de superação deste. (o texto de Lefebvre que menciono é: A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991. Fica a dica de leitura)

domingo, 10 de junho de 2012

A natureza é uma categoria social


"No princípio, tudo eram coisas, enquanto hoje tudo tende a ser objeto, já que as próprias coisas, dádivas da natureza, quando utilizadas pelos homens a partir de um conjunto de intenções sociais, passam, também, a ser objetos. Assim a natureza se transforma em um verdadeiro sistema de objetos e não mais coisas e, ironicamente, é o próprio movimento ecológico que completa o processo de desnaturalização da natureza, dando a esta última um valor." (Milton Santos: A natureza do espaço. São Paulo: HUCITEC, 1996, pág. 53)
Com a Rio+20, muita tinta e bites têm sido gastos para discutir a "natureza". Portanto, serei breve:

a) "os homens estão destruindo a natureza". Que homens, cara-palida? Numa organização social como a capitalista em que existe gigantesca desigualdade social e portanto desigualdade na capacidade de consumo, colocar a culpa "nos homens" é escamotear que alguns poluem muito mais que outros. Eu não aceito que digam que eu sou tão culpado quanto a General Motors ou a Vale. Outra: Programas de despoluição de rios, lagos ou outros cursos d'água bancados pelo Estado são necessários? São. Mas significam que enquanto os lucros ficaram com as empresas que poluíram, os prejuízos são socializados, pois somos todos nós que pagamos a despoluição.

b) O que verdadeiramente está em jogo nesta discussão toda não é a natureza. É a sociedade. O que deve ser discutido não é a natureza que queremos, mas a sociedade que queremos. Foi uma determinada formação social - que sempre entendeu a natureza separada do homem e unicamente como recurso - que nos colocou no ponto em que estamos. Portanto, o que deveria ser óbvio mas parece que não é deve ser dito claramente: se queremos mudar, devemos mudar a sociedade. Só assim será possível cambiar a maneira como nos relacionamos com o ambiente.

c) O capitalismo só mudará o que for possível valorar, o que for possível extrair lucro. É só pensar na reciclagem: o que na verdade é reciclado é só o que dá lucro. Por isso somos campeões de reciclagem de latinhas de alumínio enquanto quase todo o resto de produtos recicláveis vai para os lixões. Sem falar que reciclamos bastante latinhas à custa de superexploração da mão-de-obra dos miseráveis. Em outras palavras: sob pretexto de "inclusão social", mantemos os pobres na miséria pois só pagando pouco para os catadores é possível a reciclagem dar lucro. É realmente isto que queremos? É realmente esta "inclusão" que desejamos? É assim que "salvamos" a natureza?

A natureza é uma categoria social. Lutemos, pois, para mudar a sociedade.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Milton Santos e o direito de morar



Mexendo nos meus livros atrás de subsídios para um outro assunto, acabei abrindo um livro do Milton Santos que há muitos anos não folheava. E me deparei com o trecho abaixo. Não continua perfeitamente atual? Mesmo 25 anos depois?

O direito de morar 
E o direito de morar? Confundido em boa parte da literatura especializada com o direito de ser proprietário de uma casa, é objeto de um discurso ideológico cheio, às vezes, de boas intenções e mais freqüentemente destinado a confundir os espíritos, afastando cada vez para mais longe uma proposta correta que remedeie a questão. Por enquanto, o que mais se conseguiu foi consagrar o predomínio de uma visão imobiliária da cidade, que impede de enxergá-la como uma totalidade. O mito do direito à propriedade da casa levou, num primeiro e longo momento, a que se construíssem casas e apartamentos para as classes médias. Mesmo assim, os preços geralmente eram (e são) exorbitantes, ainda quando os imóveis são construídos com o dinheiro público, dinheiro acumulado com a contribuição obrigatória de todos os trabalhadores. Quem já pensou em coibir ou mesmo proibir as propagandas enganadoras que aparecem cada semana nos jornais para atiçar o interesse dos pretendentes e, não raro, para induzi-los em erro? Ora, diz este ou aquele tecnocrata, o custo dessa publicidade "não ultrapassa dois a três por cento do custo da obra", como se isso não fosse exorbitante. E por que então não estabelecer um tabelamento, rígido e não dócil, para a compra e o aluguel de todos os imóveis construídos com o dinheiro do povo? Nada mais natural. Os mesmos tecnocratas, presos nas gavetas das imobiliárias ou enredados em raciocínios ineptos, prosseguem na busca de uma pretensa racionalidade dos negócios, quando no caso trata-se de outra coisa. 
O que é bom para os pobres... 
Quando, diante da situação explosiva nas cidades e em face da proximidade das eleições, foi decidido construir casas para os mais pobres, foi para lhes dar habitações que já nasciam subnormais, neste caso sem aspas. A normalidade estabelecida para os pobres por definição oficial, aconselhada e defendida por pseudo-intelectuais, passou a autorizar a construção de habitações tão pequenas que conduzem a toda espécie de confinamentos e promiscuidades. Na cabeça tortuosa de tais técnicos, as pessoas têm necessidades essenciais em função da classe a que pertencem. Não foram esses mesmos que traçaram ou desenharam os famosos quartos de empregada lado a lado com os quartos muito mais amplos dos patrões? Tais fatos, relativos à "normalidade" da moradia dos pobres, são praticamente aceitos pela sociedade, isto é, por uma classe média não culta. Isto justifica pensar que o raciocínio economicista e imoral tomou o lugar da cultura, que levaria a preocupações mais nobres.
Milton Santos: O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987, págs 45-46.

domingo, 27 de maio de 2012

Buñuel, dry martini e cigarros

Buñuel fotografado por Man Ray

Alguém já percebeu a mediocridade em que se tornou a discussão sobre a "Lei da Copa?". É um assunto seríssimo, mas boa parte da energia é desperdiçada discutindo se a bebida deve ou não ser liberada nos estádios... Enquanto esta discussão moralista (sim, moralista!) engole até uma parte da esquerda, que tal lembrar alguém que foi a vida toda anti-conformista?

Luis Buñuel, escrevendo sobre bares, bebidas e etc. Afinal, ainda é fim de semana e, lembremos, este blog tem uma seção "bebedeira" ;-) Obs: todas as citações são de: Luis Buñuel. Meu último suspiro. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

Passei horas deliciosas nos bares. O bar para mim é um lugar de meditação e recolhimento, sem o qual a vida é inconcebível. (...)
Grande parte da atividade surrealista desenvolveu-se no Café Cyrano, na Place Blanche. Eu também gostava do Sélect, nos Champs-Elysées, e fui convidado para a inauguração do La Coupole, em Montparnasse. Foi lá que encontrei Man Ray e Aragon para organizarmos a primeira sessão de Um Cão Andaluz. Não poderia citar todos. Digo apenas que o café supõe a conversa, o vaivém, a amizade, vez ou outra, mulheres.
O bar, ao contrário, é um exercício de solidão.
Tem que ser, acima de tudo, calmo, bem escuro, bem confortável. Toda música, ainda que distante, deve ser severamente proibida (ao contrário do costume infame que se espalha hoje pelo mundo). Uma dúzia de mesas no máximo, se possível com fregueses pouco comunicativos. (pág. 67)
Tem uma coisa aí que concordo 100%. Adoro música e por isso mesmo, detesto bar com música ao vivo. Música se escuta. Em bar se bebe. Ponto. E agora crianças, peguem seu blocos de notas e anotem a famosíssima receita de dry martini de Buñuel:
Naturalmente, nunca bebo vinho em bar. O vinho é um prazer puramente físico, que não excita em absoluto a imaginação.
Num bar, para induzir e estimular o devaneio, o recomendável é o gim inglês. Meu drinque favorito é o dry martini. Considerando o papel primordial que ele desempenhou nesta vida que relato, vejo-me obrigado a dedicar-lhe uma ou duas páginas. Como todos os drinques, o dry martini é uma invenção americana. Compõe-se essencialmente de gim e gotas de um vermute, de preferência Noilly-Prat. Os autênticos aficionados, que apreciam seu dry martini bem seco, chegavam a dizer que bastava deixar um raio de sol atravessar uma garrafa de Noilly-Prat antes de tocar o copo de gim. Um bom dry martini, diziam certa época nos Estados Unidos, deve se parecer com a concepção da Virgem Maria. Com efeito, sabemos que, segundo são Tomás de Aquino, o poder gerador do espírito Santo atravesou o hímem da Virgem "como um raio de sol passa através de uma vidraça, sem quebrá-la". O mesmo se passa com o Noilly-Prat, diziam. Mas eu achava isso um pouco de exagero.
Outra recomenação: convém que o gelo utilizado esteja bem frio, bem duro, para não soltar água. Nada pior que um martini aguado.
Peço licença para dar minha receita pessoal, fruto de longa experiência, com a qual continuo a obter um sucesso lisonjeador.
Guardo tudo que é necessário no congelador na véspera do dia em que espero meus convidados, os copos, o gim, a coqueteleira. Tenho um termômetro que me permite certificar-me de que o gelo está numa temperatura de cerca de 20 graus abaixo de zero.
No dia seguinte, quando chegam os amigos, pego tudo de que preciso. Sobre o gelo bem duro despejo algumas gotas de Noilly-Prat e meia colherinha de café de angustura. Agito tudo, depois jogo fora o líquido. Preservo apenas o gelo, que carrega o ligeiro vestígio dos dois perfumes, e sobre o gelo despejo o gim puro. Sacudo um pouco mais e sirvo. É só isso, mas é insuperável. (pág. 70-71)
Evidentemente, tem o complemento inevitável, que nos dias que correm, parece mais uma heresia (afinal, o que é mais uma heresia para quem passou a vida provocando e subvertendo a caretice vigente?):
Impossível beber sem fumar. No que me toca, comecei aos dezesseis anos e nunca parei. (...)
O tabaco, que se casa admiravelmente com o álcool (se o álcool é a rainha, o tabaco é o rei), é um solícito companheiro de todos os acontecimentos de uma vida. É o grande amigo dos bons e maus dias. Acendemos um cigarro para comemorar uma alegria ou esconder uma amargura. Quando estamos sozinhos ou em grupo.
O tabaco é um prazer em todos os sentidos, da visão (que espetáculo, sob o papel prateado, os cigarros brancos enfileirados como que para uma parada), do olfato, do tato. Se me vendassem os olhos e colocassem um cigarro aceso em minha boca, eu me negaria a fumar. Gosto de apalpar o maço no meu bolso, abri-lo, apreciar entre dois dedos a consistência de um cigarro, sentir o papel sob meus lábios, o gosto do fumo na minha língua, ver irromper a chama, aproximá-la, encher-me enfim de calor.
E para finalizar, impossível falar de Buñuel e não fazer sequer uma referência a seus filmes. Vejam (e/ou revejam) Um Cão Andaluz, um dos maiores clássicos de todos os tempos do cinema, feito em parceria com Salvador Dalí. E como são as coisas: o filme foi feito antes de Buñuel conhecer os surrealistas. Aliás, foi por causa deste filme que ele foi convidado a participar do movimento!

AVISO: se você nunca viu este filme, saiba que contém a famosa "cena do olho". Mais de 80 anos depois (o filme é de 1929), a cena ainda choca algumas pessoas!