Dando seqüência à serie, mais um texto de Armando Corrêa da Silva:
O ESPAÇO
NO LUGAR?
A crise da
Geografia tem uma vantagem em relação à crise dos demais campos do
conhecimento. A reflexão filosófica dela esteve ausente durante
muito tempo: mais precisamente, alguns clássicos ainda a praticaram,
mas a deficiência do preparo filosófico constitui sempre uma
barreira ao encaminhamento da solução.
O
“terra-a-terra” dos geógrafos deve explicar-se como determinação
de seu objeto e, ao mesmo tempo, como a preocupação mais com o
território do que com a região, a área, o lugar e o espaço. Mais
com o lugar, tomado isoladamente (ideograficamente) do que com as
relações espaciais. A preocupação recente com estas não partiu
da reflexão, mas foi determinação externa de um mundo cada vez
mais unido pelas comunicações, que põe em crise a atomização
local, regional e nacional.
Cabe,
então, mesmo que tardiamente, retomar a reflexão. Mas esta não se
põe, se o problema filosófico não está resolvido.
Por isso,
mesmo que de forma autodidata, arrisco a fazer aqui algumas
observações sobre o movimento da razão científica, tal como o
entendo, na realização da produção intelectual.
O
procedimento didático impõe-se, então, como instrumento de
clarificação da proposição.
Da
práxis à epistemologia
A práxis
implica uma demonstração teórica e em uma demonstração prática.
A primeira
remete à consistência do argumento e a segunda à verificação
empírica. O trabalho intelectual científico tem essa
característica.
É essa
práxis que constitui a gênese da produção da teoria, que se
realiza como proposição e argumento ontológicos.
A
ontologia, uma vez delineada, remete à epistemologia.
A
epistemologia, enquanto discurso crítico, baseia-se na gnosiologia,
na teoria do conhecimento, na lógica e na metodologia.
Vejamos
cada ma delas, pois disso depende a elaboração do saber, que
constitui o input de uma nova realização da práxis.
O que se
segue são suposições, que podem ser compreendidas como hipóteses
sistêmicas.
Em
gnosiologia o ponto de partida é o raciocínio. Produzindo o
conceito-ideia, ele leva à compreensão. O conceito-ideia
expressa-se como categoria, que remete à memória cultural, voltando
em feed-back ao raciocínio.
O
raciocínio produz a consciência, que é conceito-ideia e
compreensão. Mas a consciência não pode realizar-se sem a
intuição. É nessa relação que se põe a pré-ideação. Por
isso, também a impressão-expressão. Esta causa a emoção (que é
manifestação da social-natural da humanidade). A memória cultural
registra a pré-ideação.
A intuição
remete à sensibilidade que é a forma de pôr-se a sensação (o
sensível), e o sistema nervoso, que programa a memória genética.
Esta põe-se como feed-back do sistema nervoso. Por isso, a
memória genética registra também a pré-ideação.
A memória
genética e a memória cultural entram em interação como
determinações naturais e sociais.
Então, a
gnosiologia estuda a estrutura e funcionamento do conhecimento.
A teoria
do conhecimento propõe-se, inicialmente, como conteúdo e forma.
O conteúdo, como significado, apresenta-se como real e aparente. A
forma, como significante, apresenta-se, igualmente, como real e
aparente.
Há,
então, uma estrutura e funcionamento do conhecer, que se põe,
desde logo, como linguagem. Há a linguagem do senso comum e a
linguagem do conhecimento científico. A linguagem é relação
sujeito-objeto como prática ou como teoria. No primeiro caso, ela
remete à verificação empírica e ao comportamento. Por isso, é a
transformação inadequada do real; a verdade, a transformação
adequada do real. No segundo caso, ela remete às representações
lógicas e às ideias. Por isso, o erro é o conhecimento das
aparências das determinações; a verdade, o conhecimento das
essências das determinações.
Essa
estrutura e funcionamento do conhecer produz, como resultado, a
verdade lógica, como conhecimento da essência das determinações,
o que leva à solução do problema: produz, também, a verdade
empírica, como transformação adequada do real, que corresponde à
satisfação da necessidade e, por isso, remete à solução do
problema.
A verdade
lógica é input da relação inicial de conteúdo-forma, do
mesmo modo que a verdade empírica.
Este
sistema fechado tem modalidades de coerência interna.
A lógica
dá conta desta coerência interna, enquanto estrutura e
funcionamento do pensamento.
Em
primeiro lugar, como símbolo e sinal, significado e significante.
Em segundo
lugar, como afirmação, negação e negação da negação.
Em
terceiro lugar, como identidade, não contradição e terceiro
excluído.
Em quarto
lugar, como parte e todo.
Assim,
como lógica simbólica, como lógica dialética, como lógica formal
e como lógica estrutural.
O conjunto
da estrutura e funcionamento do pensamento põe-se então,
sistematicamente, como interação entre significado e movimento,
significado e forma, significado e análise, que é output do
significado.
Mas como
realizar essas operações?
A
metodologia procura ser a resposta.
Ela lida
com a explicação e a descrição. A explicação é encadeamento de
raciocínios, que produzem a interpretação. Ela é a mediação
entre o concreto lógico e a abstração. A descrição, que se
subdivide em hipótese, observação, análise e generalização,
produz a investigação, que é mediação entre a abstração e o
concreto sensível.
Se se
caminha do concreto lógico ao concreto lógico, da abstração à
abstração, do concreto sensível ao concreto sensível, tem-se a
dedução. Então, a explicação é sempre um processo de dedução.
Se a caminhada do concreto lógico à abstração e desta ao concreto
sensível, ou do concreto sensível à abstração e desta ao
concreto lógico, tem-se a indução. Dedução e indução
relacionam-se porque não há explicação sem descrição e
descrição sem explicação no conjunto do pensar.
A
epistemologia produz-se, então, como discurso estrutural-funcional,
que se expressa como comunicação.
O problema
realmente difícil põe-se como registro de uma nova programação,
que implica sempre a decodificação da mensagem. Por isso, o
feed-back é sempre ontológico ou, mesmo, metafísico. Mas
decodificá-lo é retomar o processo de produção da ontologia.
Põe-se o
aplicar da proposição, como trabalho intelectual científico
referido ao objeto da geografia.
(SILVA,
Armando Corrêa da. De quem é o pedaço? Espaço e cultura.
São Paulo: HUCITEC, 1986, pág. 131-134)